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A indizível



Qual motivação teria alguém para continuar levando essa ressaca contínua?
Parece que em um momento nós ríamos, bebíamos, dançávamos, fazíamos planos, transávamos, ouvíamos rock, fazíamos sacanagens, poesia, rituais místicos, pactos de sangue com vinho e cocaína. Aí então todos se foram, parece, permaneci neste apartamento alugado que foi ficando cada vez mais escuro e mofado, juntando talheres sujos e comida estragada, vivendo entre lençois manchados de molho e roupas íntimas puídas. Com gente estranha entrando e saindo com suas manias, obsessões, traumas e ressentimentos e suas opiniões políticas que não servem para o coletivo; suas taras, seus trejeitos e desajustes, seus pêlos, pedaços de unhas, cheiros e secreções...
Enquanto tudo isso acontecia algo em mim despertou sem que eu soubesse. Uma ideia nascida da monótona ladainha da cidade, veio como um estranho insight, - iluminação às avessas. E cortejando essa estrada insone ao pé da janela, que traz a desgraça e a estagnação em seu alforje indecente, senti algo em mim revirar a cada gota de esgoto sorvida pela alma.
Vi-me velho e feio, desajustado e à margem. Vi meus atos, tentáculos, alcançarem religiões obscuras-sorridentes como que em propagandas infantis em outdoors. Vi pessoas doentes por detrás de balcões, segurando firme no corrimão para não enlouquecerem, vi inocentes impassíveis em seus ofícios de matar,
É disso que a vida é feita, sonhos frustrados e decepções, na maior parte do tempo. É sobre tolerância. aborrecimentos, chateação, coisas pra resolver e prazer pavloviano pra compensar.
Quando me vi atravessando de novo a mesma realidade, o jogo rodar de novo, com apenas algumas variações por todo o trajeto, preso e condenado, sem alívio, no fractal cosmológico, desesperei-me da pior forma - existencial. Era o suicídio apenas o gatilho para que a próxima condenação começasse, desta vez com o fim fora do meu controle e visões de víceras sobre o chão e carne chamuscada?
Não há romantismo fora do suicídio, onde se pode preparar o leito com as flores de preferência, lambusar de mel e bálsamo a lâmina, perfumar a corda, lamber a bala, em namorar a altura... Há um torpor em vislumbrar este anti-aniversário, uma tontura quase sexual em escolher a trilha sonora apoteótica e há também o desprezo por tudo isso, o desejo que tudo siga o mais rápido e indolor possível.
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A indizível by Octávio Brandão is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License.
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