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18 de março


Quantas vezes já não me sentei na beira da cama, ao lado do criado-mudo, cansado de tanto aborrecimento e tristeza, querendo apenas ser para o resto da vida. Sentindo-me prostrado, com intentos de parar o mundo, saltar para a glória à força, realizar uma utopia, lançar-se ao que chamam missão pessoal, projetar-me ao fantástico súbito, arrebatador e derradeiro; ou mais precisamente, para o final feliz.
Meus braços sem vida repousam na côxa retesada, extenuada. Hoje não fui trabalhar por conta das dores nas costas. (Machuquei-a em uma das vértebras ao carregar correndo um cara nos ombros no treinamento de Krav Maga.)
Minha alma, sinto-a uma casa da qual querem abandonar sem motivo, pelo simples ímpeto de fugir. Esta, de estrutura frágil, de rachaduras extensas nas paredes, preenchidas de mofo, vigas que estalam por detrás do teto, como fantasmas que outrora estavam adormecidos e que agora reclamam seu território.
A solitude me oprime e meus jardins da infância, com estátuas de mármore que eram dóceis e festejavam à brisa da primavera, contavam fábulas à noitinha; as fadas de verde cintilante, as plácidas pontes japonesas sobre as carpas soberbas, hoje são os mesmos mas não me reconhecem mais. São os mesmos mas só outros jardins, estrangeiros, sem encantos, desenhados por paisagistas burocráticos, escolados, gabaritados, meticulosos, milimetrados, registrados e comprovados, que têm esposas e casos com meninos. Com plantas plantadas por jardineiros cujas mãos grossas foram talhadas para a descarregar e carregar pás e coifas do Chevete mas que foram também moldadas pelos anos com copo que mata o espaço da consciência com cachaça, música alta e carinho fácil.
Do menino franzino com espírito valente, fronte erigida em vislumbre de nebulosas, berços de estrelas, errou tanto que fragilizou-se e, já velho, hoje é só um guerreiro sem técnica, apenas com experiência e dura resignação. Hoje minha maça e minha flauta são o martelo e a caneta lamuriosa que escreve este diário sobre lágrimas ressecadas.
Nos dias de folga chove aqui dentro porém não saio ao sol do passeio público pois doem-me as pernas e preciso guardá-las para o treino de amanhã.

Dos enlevos artísticos, inspirações poéticas e a força do improviso transcendental, de algum espaço, por uma via diferente que tomaram, vieram a se tornar a paixão pela dor física como único meio de sobrevivência. Os dentes cerrados são a renúncia ao impulso primal e a esperança só mais uma porcelana na estante, lembrança arqueológica, presente de uma criança que em uma era foi especial.
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O que quis eu fazer da vida? Escolhi não me acorrentar ao sistema, perpetuando sua crueldade, sendo massa de manobra, exército de reserva, tudo isso para ironicamente não me escravizar. Preferi escrever por escrever e publicar apenas algo de meu universo de ideias esparsas e desconexas. Na internet ainda! Em um blog escondido, assim os apenas conhecidos não têm acesso ao podre profundo de meu espírito. Aparte disso alheio-me com narcóticos ou embebedo-me em endorfinas e serotoninas.
Hoje sou o homem do recolhimento, o do cobertor vermelho e do sofá de frente pra sacada (a vertigem sedutora…). Sou aquele que ouve os carros atemporais de quem teve uma longa vida curta e imagina como seria este momento na rotina das charretes e bondes.

Hoje sou o abstêmio que toma antidepressivo e diazepam pela manhã para esquecer que é falho, incompleto, malformado, fracassado, e divagar sobre o dia em que sentiu tesão e vergonha de sentir tesão ante uma jovem médica sob um clima romântico no fim-de-tarde do porto e não ter feito nada, pois havia pressão sobre ele, pois ela tem o direito de negar até quando e onde quiser mas ele não pode ter o direito de se sentir acanhado. Eu sou um suicida social. Talvez nem isso! Menos que isso, talvez seja não mais que apenas um suicida, o que se retirou do espetáculo pelas portas dos fundos do teatro pois nesse concerto ele foi o faxineiro, o que limpou sozinho o banheiro fazendo companhia para si e sorvendo das paredes a alegria do evento que passou.

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