Quantas
vezes já não me sentei na beira da cama, ao lado do criado-mudo,
cansado de tanto aborrecimento e tristeza, querendo apenas ser
para o resto da vida. Sentindo-me prostrado, com intentos de parar o
mundo, saltar para a glória à força, realizar uma utopia,
lançar-se ao que chamam missão pessoal,
projetar-me ao fantástico súbito, arrebatador e derradeiro; ou mais
precisamente, para o final feliz.
Meus
braços sem vida repousam na côxa retesada, extenuada. Hoje não fui
trabalhar por conta das dores nas costas. (Machuquei-a em uma das
vértebras ao carregar correndo um cara nos ombros no treinamento de
Krav Maga.)
Minha
alma, sinto-a uma casa da qual querem abandonar sem motivo, pelo
simples ímpeto de fugir. Esta, de estrutura frágil, de rachaduras
extensas nas paredes, preenchidas de mofo, vigas que estalam por
detrás do teto, como fantasmas que outrora estavam adormecidos e que
agora reclamam seu território.
A
solitude me oprime e meus jardins da infância, com estátuas de
mármore que eram dóceis e festejavam à brisa da primavera,
contavam fábulas à noitinha; as fadas de verde cintilante, as
plácidas pontes japonesas sobre as carpas soberbas, hoje são os
mesmos mas não me reconhecem mais. São os mesmos mas só outros
jardins, estrangeiros, sem encantos, desenhados por paisagistas
burocráticos, escolados, gabaritados, meticulosos, milimetrados,
registrados e comprovados, que têm esposas e casos com meninos. Com
plantas plantadas por jardineiros cujas mãos grossas foram talhadas
para a descarregar e carregar pás e coifas do Chevete mas que foram
também moldadas pelos anos com copo que mata o espaço da
consciência com cachaça, música alta e carinho fácil.
Do
menino franzino com espírito valente, fronte erigida em vislumbre de
nebulosas, berços de estrelas, errou tanto que fragilizou-se e, já
velho, hoje é só um guerreiro sem técnica, apenas com experiência
e dura resignação. Hoje minha maça e minha flauta são o martelo e
a caneta lamuriosa que escreve este diário sobre lágrimas
ressecadas.
Nos
dias de folga chove aqui dentro porém não saio ao sol do passeio
público pois doem-me as pernas e preciso guardá-las para o treino
de amanhã.
Dos
enlevos artísticos, inspirações poéticas e a força do improviso
transcendental, de algum espaço, por uma via diferente que tomaram,
vieram a se tornar a paixão pela dor física como único meio de
sobrevivência. Os dentes cerrados são a renúncia ao impulso primal
e a esperança só mais uma porcelana na estante, lembrança
arqueológica, presente de uma criança que em uma era foi especial.
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O
que quis eu fazer da vida? Escolhi não me acorrentar ao sistema,
perpetuando sua crueldade, sendo massa de manobra, exército de
reserva, tudo isso para ironicamente não me escravizar. Preferi
escrever por escrever e publicar apenas algo de meu universo de
ideias esparsas e desconexas. Na internet ainda! Em um blog
escondido, assim os apenas conhecidos não têm acesso ao podre
profundo de meu espírito. Aparte disso alheio-me com narcóticos ou
embebedo-me em endorfinas e serotoninas.
Hoje
sou o homem do recolhimento, o do cobertor vermelho e do sofá de
frente pra sacada (a vertigem sedutora…). Sou aquele que ouve os
carros atemporais de quem teve uma longa vida curta e imagina como
seria este momento na rotina das charretes e bondes.
Hoje
sou o abstêmio que toma antidepressivo e diazepam pela manhã para
esquecer que é falho, incompleto, malformado, fracassado, e divagar
sobre o dia em que sentiu tesão e vergonha de sentir tesão ante uma
jovem médica sob um clima romântico no fim-de-tarde do porto e não
ter feito nada, pois havia pressão sobre ele, pois ela tem o direito
de negar até quando e onde quiser mas ele não pode ter o direito de
se sentir acanhado. Eu sou um suicida social. Talvez nem isso! Menos
que isso, talvez seja não mais que apenas um suicida, o que se
retirou do espetáculo pelas portas dos fundos do teatro pois nesse
concerto ele foi o faxineiro, o que limpou sozinho o banheiro fazendo
companhia para si e sorvendo das paredes a alegria do evento que
passou.
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