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O Santo dos Viciados

 O Santo dos Viciados 

 

 

A Trash Novel 


 

 

 


 

 

  

  

  

  

Título: O Santo dos Viciados (ou Deve haver um jeito quântico de foder com tudo isso) 

Autor:  Octávio Brandão 

Coordenação Editorial: Inês Nabais 

Foto de Capa: Octávio Brandão Editor: Edições Hórus Impressão:  edicoes.horus@gmail.com http://edicoeshorus.wix.com/edicoeshorus 

 

1ª edição 

Depósito Legal: 413345/16 

ISBN obra: 978-989-8837-13-4 

 

 Todos os direitos reservados. 

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização da editora. 

A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós. 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

"Aos familiares, amigos e aos que se identificarem com a história, mas principalmente à minha mãe." 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Primeira parte 

       

 

 

                        

            É, as coisas haviam ficado pretas pra mim! Foram dois os que me atacaram. O primeiro soco perfurou minha bochecha, enfiando barba suja através dela, na gengiva onde meu primeiro molar superior direito deveria estar. O dente deslizou como se fosse um drope sabor sangue e soco-inglês pela língua amargada.  

Quando o efeito de estática de rádio mal-sintonizado passou, eu ainda estava de olhos abertos e já podia distinguir a aparência dos dois vultos de calça camuflada, coturnos e suspensórios. 

— Filho da puta! Vagabundo! 

— Quer um trocado pra encher a cara? — careta de escárnio. 

As palavras saíam com tanta naturalidade que por quase um segundo achei que aquilo era tão normal quanto varrer a calçada na frente de casa.  

A noite persistia apesar dos bem-te-vis. 

Eu estava travado de medo! As endorfinas surtiam seu efeito analgésico, porém, já começavam a ser superadas pela alta quantidade de ACTHi e cortisolii junto com adrenalina em meu sangue, obrigando-me a hiperfocar nas chances de sobrevivência.  

Não houve tempo pra nada. O careca bicou minha fuça com o coturno mais brilhante que eu já havia visto e, movido por um atavismo sádico, o outro foi tomado pela tentação de me sobrepujar. 

— Você deveria sumir daqui. A culpa da merda que tá o país é toda sua!  

— O cara prefere tomar no cu aqui na cidade grande a ir pra outro lugar. Isso aí, se fode aí, seu bosta! 

— Vai pro meio do mato! Lá é que é lugar de bicho. 

O careca destilava toda a revolta que sentia por causa da infância ao lado do pai, que agonizara numa cama lambuzada de urina e bosta decorrente do glioma desenvolvido no trabalho. 

Minha surra havia sido uma carnificina rembrantesca! 

Fui pego pela gola da camiseta, que não cedia em rasgar, e meu corpo anêmico foi arrastado por um daqueles jamantas enquanto o outro arrancava meus sapatos usados, comprados por dois reais no viaduto que liga a Brigadeiro à João Mendes. 

— Você não merece nem a roupa que nós fabricamos para você! Seu merda! 

Este outro, o mais frio e não tão apaixonado, era guiado simplesmente pelos hormônios misturados ao sentimento de injustiça social e hardcore. Morreria uns meses mais tarde por causa de um silencioso aneurisma de aorta abdominal, quando, numa manhã de domingo começaria a sentir dores na região lombar e no abdômen, porém, por achar que a dor era proveniente das noites errando por São Paulo, ela seria ignorada, sua vida também... 

Já estava nu, com minhas roupas espalhadas pela 14 Bis, todo fodido quando ouvi os gritos de uns travecos que estavam por ali, dirigindo-se aos carecas a roucos brados.  

— Aí, ô veado filho da puta! Você é o próximo, seu merda! — retruca o condenado com dedo em riste. 

As sombras dos travecos correndo moldadas na cintilação urbana não eram nada femininas. 

Entre a troca de insultos reverberando no concreto do viaduto, meu estado foi ignorado por um breve momento. Naquela hora os objetos do ódio eram os bravos cavalheirosdamas. Foi quando consegui alcançar minha peixeira enferrujada solta perto das minhas calças. Era o tal do agora ou nunca operando seu milagre.  

Com todos os músculos retesados e o maxilar travado, num último impulso de sobrevivência, de chofre, levantei-me usando a força ascendente para cravar a dita-cuja no papo do canalha, e ver seus olhos estuporados delatando que ele sentia a língua espetada em seu palato. No segundo seguinte – de confusão e cegueira - o outro já possuía um rasgo que ia da maçã direita do rosto até o lado esquerdo do queixo, tendo sido lacerada sua narina direita e o lábio – não sem que eu tivesse tomado um soco de raspão na nuca e um chute na bunda. 

Aí é que os travecos viram a possibilidade de vantagem e correram em nossa direção como zagueiros de futebol americano. Os carecas desapareceram desesperados deixando para trás um borrão de sangue no pálido fim da madrugada do centro. 

— Gente! Que sacanagem! — disse, levando a mão à boca o travesti mais atarracado. 

A feminilidade barbada ressurgia naqueles semblantes. Ao se agacharem, pude sentir o cheiro de pica com lavanda, baba e estômago (este último é aquele típico de quem não come nada e bebe muito, há muito). 

— O que dá na cabeça desse povo pra fazer um negócio desses? — ela estava atônita. 

— Meu Deus! Qual é seu nome? Michelli, liga pra ambulância pelo amor de Deus! Amigo, você vai precisar de uns pontos. Mas vai ficar tudo bem. 

Os intervalos de consciência se impunham e a noção do tempo havia sumido – a bebedeira, pancadas na cabeça... Eu me levantara apesar do veemente protesto delas.  

Em meu cinema particular, diverti-me vendo meu rosto atônito encarando o nada. Que ator eu poderia ter sido! As órbitas forçando passagem entre as pálpebras arregaçadas, em uma careta tétrica; o corpo nu de onde pendia um pênis enrugado e brilhante de sangue fresco, a mão agarrada firme a peixeira – que de tanto sangue parecia fazer parte da mão. O tempo parou. Foi quando percebi um flash de câmera. Que bela foto, a do jornal marrom: nós, aquelas figuras na 14 Bis – um mendigo e dois travecos, entre roupas em trapos e o cheiro de mijo seco velho. Parecíamos estátuas, tamanha era nossa estupefação. Tudo isso era um manjar para o espírito obsessivamente autopiedoso e neurótico como o meu.  

Um pouco antes de ser tomado pela náusea e pela tontura, um pouco antes de desmaiar entre a multidão que se juntava indignada, pude ouvir os gambés chegando com seu alarde habitual. Agora sim o Sol assumia seu turno enquanto a noite sádica, satisfeita, ia enxotada.  

A cena se desfigurou 

 

            ... estrelas e tontura, amnésia, torpor...  

... prostrado... um tipo de plástico ou courino encharcado de suor sob meu corpo... paredes de tinta acrílica ocre descascando no teto iluminado pela luz fria...  

Minha maca estava no corredor e via gente passando pra lá e pra cá. Gemido, criança chorando, conversas entre os enfermeiros, lamentos, blasfêmias contra Deus, tudo sob o intenso cheiro de éter.  

Na maca da frente, um velho agonizava e me olhava com desespero mudo. Cravado em seu crânio estava um cano de plástico, ele provavelmente estava com um certo inchaço lá dentro, sei lá! Estava tão chapado que não sabia se o que eu via era sonho. Adormeci de novo... 

Acordei no escuro e no silêncio, em outro ambiente, não estava mais naquele corredor. Fui assaltado por uma angústia, como se tivesse sido capturado, e que o que lá estava, me esperava acordar para me abater e me preparar para o jantar. Sentia que havia recobrado as forças quando me pus de pé sobre a cama. Senti uma dor estupenda nas costas e na coxa esquerda quando, num átimo, a luz do quarto iluminou mais seis ou sete camas ocupadas por gente se contorcendo. Meu rosto contraiuse como uma bola de capotão murcha por causa da luz. 

Estranhei não estar só.  

— E aí, vai voar? — disse o figura calvo e franzino, abrindo a porta e deixando vazar o som do hospital para dentro do quarto. 

Alguém espirrou melando o bigode. 

Vi que uma sonda saía de dentro da fralda que eu usava e ia direto para um recipiente tubular preso à minha coxa, que foi arrancada instintivamente de meu canal urinário.  

Saltei da cama e senti uma emoção hollywoodiana por uma perspectiva que só poderia ser sentida pelo próprio personagem.  

Corri pelos corredores como Indiana Jones, sem saber pra onde ir. Em uma curva, olhei pra trás e pude perceber que minha carreira havia acionado os seguranças, que por sua vez me seguiam com rádios nas mãos. Ganhei a recepção lotada e, em seguida, o estacionamento. Pela temperatura sabia que era madrugada. 

Corri sem me cansar até a garagem do hospital e percebi que uma pessoa havia se colocado na frente da cancela. Não parei, fiz como um artilheiro de rugbi e driblei o doido, que me segurou pela camisola hospitalar, fazendo-me cair de costas. Clamava para que eu não fizesse nada com ele, pois era só um empregado do Estado com salário miserável. Eu entendia o infeliz. 

Fui levado de volta para o quarto de origem por três seguranças: um em cada braço e outro na frente, falando no rádio que a situação estava controlada, que era apenas um 13 de fraldas que queria fugir. Nem precisava de tudo isso, convenhamos...  

Deitaram-me. A enfermeira me amarrou dizendo que fui eu quem pedira por aquilo. Fui sedado outra vez. 

A internação compulsória em uma clínica psiquiátrica logo após a história do pega-pega no hospital havia sido compreensível, afinal havia a exposição na mídia e a constatação de que eu não tinha nem onde cair morto, além do mais fora constatada a mudez traumática. Acharam por bem me fazer aquele favorzinho – o que não é praxe de nenhum funcionário público. Porém, todo psiquiatra, de triagem ou não, que se preze, sóbrio, sensato, sabe que ele mesmo é só mais uma parte do mecanismo imundo na qual vivemos hoje e, quando um semelhante como eu emerge, ele se reconhece e a Ética natural guia seus atos.  

Consegui sair do efeito do coquetel sedativo só à tarde, de sei lá que dia, com a sensação de quem dormira por dois anos e de ter comido meio quilo de massa de pão crua.  

A corcova dos meus dedos por baixo dos lençóis, a porta e dois armários foram as primeiras coisas que vi. Estava me sentindo um caco! Fiquei um tempo na cama pensando em tudo o que havia acontecido.  

Levantei-me com dificuldade e observei que ao lado da minha havia outra cama. Ao longe pude ouvir o som de uma TV.  

... nós vamos investigar a ocorrência. Já temos a descrição dos agressores... 

O corredor dava para uma sala com mais alguns internos que se juntavam para assistir a tevê presa à parede. Um contenção (aquele tipo que ajuda a segurar e sedar os mais alterados) veio ao meu encontro, reparou no estado da minha face, recuou o olhar e disse com o rosto virado para o outro lado: 

— Então, me acompanha que a gente vai ter que administrar um remedinho pra você ficar calminho. 

Eu pensei: mais calminho que eu já estou?!? Ainda tô chapadaço!!! Tive quase certeza de que meu semblante havia informado a ele este fato. O contenção se adiantou. 

— Amigão, é o seguinte: você precisa tomar, senão vamos ter que fazer você tomar à força. Você escolhe. 

Pegamos um corredor à frente do que tínhamos saído e viramos mais a frente.  

... reparem nas cenas que vamos exibir a seguir. Foram feitas por um cinegrafista amador. São cenas bizarras!... 

Havia pouco mais de dez pessoas no recinto. Os que ainda eram lúcidos repararam minha presença, uns fitavam surpresos, outros curiosos, enquanto alguns apenas deixavam vazar consternação. Um deles olhou-me com entusiasmo e ao mesmo tempo apontava a tevê balbuciando qualquer coisa, como se eu fosse o Robin Hood e ele fosse da minha quadrilha.  

Era eu mesmo ali na tela! Tão diferente de quando eu nasci! Não era o filho único amado pelos pais. Não era o estudante acanhado, antissocial que já manifestava seu desajuste emocional por intermédio de seus devaneios delirantes pelos cantos das paredes, mas que era inexplicavelmente querido; talvez por ser incapaz de ferir, uma vez que as palavras lhe faltavam... 

... observem o estado desse indigente. Onde é que nós estamos?!? Como é que o Estado deixa uma situação dessas chegar a esse ponto? Essa violência na cidade de São Paulo chegou a níveis IN-SUS-TEN-TÁ-VEIS! Eu só quero saber quando é que as autoridades vão se dar conta de que o país não é um zoológico e começar a tomar providências... 

Um dos internos se dirigiu a mim de forma bem lúcida. Parecia estar em sua própria casa, assistindo televisão com os pés em uma mesinha de madeira. 

— É, velho, você está no lugar certo! Sua história é parecida com a de vários aqui, cê tá ligado, né?  

Aponta para a notícia com o queixo. Ao lado dele uma mulher com frias feições infantis me olhava com curiosidade. No canto da boca um fio de baba grosso ligava o queixo de um cara pequeno à roupa dele. Estava olhando para a janela.  

... Acabamos de receber a informação de que um dos suspeitos foi achado em Santo André, perto da estação de trens... 

O contenção já vinha pelo corredor.  

— Vamos até a monitoria? 

... O estado do pedinte agredido é melhor. Nesse momento ele encontra-se internado numa clínica psiquiátrica, pois os traumas psicológicos foram maiores do que as lesões corporais. Voltamos daqui a pouco com mais informações sobre o caso do pobre mudo da 14... 

O Pobre Mudo da 14! Minha autopiedade é uma criança mimada e faminta. Ela se regozija...  

Fomos pelo corredor da frente, cheio de portas e mal iluminado, para uma salinha nos fundos onde se encontrava um cara morbidamente obeso com uma cara pouco amigável e manchas negras em torno dos olhos, sentado numa cadeira de escritório por trás de uma mesa. A repulsa dele ante meu estado foi notória. 

— Senta aí, cara! — apontou a cadeira arfando. 

Enquanto isso o contenção mexia numas caixas de sapato logo atrás de mim.  

— Você tá famoso, maluco! Veio jornalista saber como você está e o escambau! — fez uma pausa e continuou para o contenção. — Clebão, vê se tem Diazepam lá no almoxarifado e já trás pra ficar aqui de reserva.  

Voltou-se de novo pra mim e continuou. 

— Primeiro de tudo: você me ouve? Se sim responde com a cabeça.  

Meneei a cabeça afirmativamente. 

— Consegue falar? 

Houve um impulso, uma confusão e desespero, eu me comprimia mais e mais naquela cadeira de madeira. Vendo a minha situação, ele apressou-se em abreviar minha aflição. 

— Beleza, meu nome é Oto e eu sou o administrador aqui do barraco. — riu-se, afundando o rosto entre a papada e as bochechas. — Você tá abaladão, né? — esperou eu sinalizar que sim com a cabeça. — Aqui nós temos profissionais pra te ajudar a tratar desses machucados aí, aliás os caras te deixaram feio, hein! — pausa. — O importante é que você foi admitido pela triagem como doente mental pelo estado em que você se encontra e pelo laudo enviado pelo hospital. Sua tentativa de fuga e tal... Você compreende o que eu digo? 

Fiz que sim. Limpou o nariz com a mão, olhou para a papelada e depois cravou os olhos azuis nos meus de novo. 

— Que bom! — disse sem muito entusiasmo. — Deixa eu te explicar, a casa trabalha com procedimentos psiquiátricos para casos como o seu. Você vai tomar remédios prescritos por gente especializada, vai comer, dormir e atender ao nosso regulamento com boa vontade durante 3 dias. Dessa maneira você vai ser tratado com carinho. Mas, se por acaso você ficar bravo, quiser ir embora antes do período pré-determinado ou ser desobediente, sabe o que vai acontecer? Sabe esses caras grandões, que nem o Clebão? Eles trabalham aqui pra dar amor com força pra pessoas especiais como você, que não querem cooperar, entende? 

Amor com força é foda! A casa caiu pro meu lado total. 

Sorriu e eu o odiei de leve. Pegou o telefone, discou e esperou. O Clebão adentrou a sala quente com as caixas e acondicionou-as em uma gaveta atrás do gordão. Olhou pra mim e sorriu. 

— Ow, então, o telefone tá ocupado. O doutor vai ter que atender o menino aqui amanhã — voltou-se pra mim. — Ó, o doutor vai te atender amanhã, tá bom?  

O que importava quando eu iria ser atendido?!? Eu não tinha controle de nada estando ali! Além do mais sabia que iria ficar chapado com esses remédios por tempo suficiente para não sentir nenhuma crise. O infeliz falava alto e com mímica achando que eu era surdo ou que eu era retardado. 

— Ah, lembrei! Você é fumante? 

Pra cacete! 

 

Então, o cigarro é racionado. De duas em duas horas você vai receber um que você pode fumar, guardar... Você é quem sabe. 

Ótimo...!  

Nesse momento um copinho apareceu na minha frente, vindo do meu lado esquerdo. Pus na boca e tomei a água do outro copinho. 

— Abre a boca pra eu ver se você tomou tudo. — Depois de ter se assegurado continuou. — Mudando de assunto um pouquinho, eu observei que você não tinha nenhum documento com você. Quero dizer, você não tinha nada além desse sapato de boneca aqui. 

Sacou de um dos bolsos um sapatinho, de pé esquerdo, meio limpo, com vestígios de sangue. 

— Você não é pedófilo, não, né? — riu. 

Porra, gordão, não fode! 

Ele fez uma pausa, pôs a atenção em um clipe de papel ainda com o sorriso no rosto, pegou o telefone de novo, discou e esperou. Enquanto isso conversou com o contenção. 

— Você sabe se a Nina melhorou?  

Ela continua com a aquela cara estranha. Assistiu 

televisão o dia inteiro, mas parece que tá bem sim. 

Voltou-se de novo pra mim. 

— Essa mina tentou se matar ontem. Tomou 15 bolinhas de naftalina e depois começou a passar mal. Tivemos que fazer uma lavagenzinha gástrica nela — os dois deram uma risadinha maliciosa. — Coisa básica! 

— E o Fred então? Coitado desse aí, você lembra? 

— Opa! Se lembro. 

— Esse cara tinha uma síndrome com o nome estranho: cliver... cluster-bussaiii... cla..., sei lá. Bom, o coitado veio parar aqui depois de ter ficado um bom tempo na cadeia por Atentado ao Pudor depois de ter encoxado um poste no meio da Rebolsas — disse para mim. 

Riu-se todo. 

— Eu rio, mas... Coitado! — explicou-se Oto. 

— Foi espancado na rua dele pelos populares que achavam que ele era pervertido. Povo ignorante, né, nem imaginava que o cara era doente. — Clebão disse sério, escamoteando a ironia. 

É! Foi, coitado. Eu rio, mas tenho dó — voltou-se 

para mim. — Essa síndrome faz o cara não reconhecer as coisas, de não se ligar quando uma situação é perigosa e ele também não faz distinção entre o que é ou não um parceiro sexual.  

Riu-se de novo. 

— Ele era uma figuraça! Vivia metendo as coisas na boca, tipo coisa suja, sabe. Catava do chão. Era folha seca, chiclete mastigado, bituca de cigarro... Coitado. 

Fez pausa e tentou a ligação de novo. 

— Que demora. O Chico deve ter saído. — olhou de novo pra mim e quando ia falar, a pessoa do outro lado atendeu. — Chicô! Qual é o nome daquela senhora que internou o Ângelo? Pra eu por aqui na ficha dele... sei...tá bom... Valeu, meu querido. 

Sem nem me olhar, ele me perguntou, escrevendo. 

— Foi uma tal de Valquíria que te internou no hospital. 

Você conhece ela? 

Era o outro traveco. 

— Tem um interno aqui que eu acho que vocês vão se dar bem. O nome dele é Carlos. Ele teve um apagamento de 

 

tanto cheirar cocaína e beber conhaque. Ficou cinco dias sem dormir e foi encontrado nu na padaria por moradores do prédio onde morava. Chegou aqui achando que todos iriam matá-lo... Figura! — falou, tocando o indicador no polegar enfatizando. 

Os dois riram de novo e eu fiquei pensando no porquê de esse tipo de gente achar que alguma mínima coincidência é motivo para uma relação de amizade.  

 

Eram umas 16h. O maldito programa de jornalismo trash já havia cansado do Pobre Mudo da 14 e agora passava novela. Os malucos estavam todos dispersos. Dois prováveis drogaditos jogavam damas e nem fizeram muito caso quando cheguei na sala meio deslocado. Um que estava bebendo água no bebedouro se aproximou e, estendendo a mão disse: 

— E aí, beleza? Bem-vindo! Eu sou Anatole. Prazer. Os caras me chamam de Velho...  

Apenas estendi a mão. Não sentia muito prazer em conhecer ninguém há muito tempo e esse momento não era especial... Fiquei olhando a minha volta. 

— É como se tivesse perdido a boca inteira, não é? 

Fiquei surpreso com a exatidão de sua descrição da minha condição. 

— Mas se você não se comunicar vai ficar doidão mesmo, cara. Seus olhos perscrutam o espaço, você assimila as coisas, velho. Na sala da TV eu sabia que não estava falando com um retardado qualquer — diz Anatole. 

Anatole falava com um baita sotaque. Não pronunciava direito sílabas com til, o erre era forte, bem como o o, que soava como a. Um jeito lento, analgésico, animava aquele cara. Era alto, com cabelos meio ondulados, castanho-claros, que terminavam em uma barba de três semanas por fazer. A maçã do rosto estava inchada, e celhos estavam por despontar sobre seus olhos. Não possuía o incisivo lateral inferior direito e falava com dificuldade, pois o ar passava pela cavidade sob a gengiva ainda lesionada. Usava uma calça bege, moleton azul com toca e chinelos de dedo que mascavam as barras da calça. No dedo anular da mão direita carregava um anel de ouro-branco com uma pedra de jade encravado. 

No momento seguinte, um espigão desdentado se aproximou rapidamente, tirou uma das mãos de dentro da calça – da bunda – e estendeu-a para mim.  

Daqui três dias, ó! 

E fazia que ia fugir, olhando para o muro e mexendo com os dedos das mãos, rindo. 

— Daqui três dias, ó! 

De novo e de novo; e não ia parar se Anatole não interviesse.  

— Casé, dá um tempo — virou-se pra mim. — Vamos dar um rolê. 

Retiramo-nos pela porta que dava para o jardim da porta de entrada. Fiquei pensando no que esse cara queria com um mudo e certamente louco como eu? Comunicação sadia devia ser escassa aqui. 

— Tá vendo aqueles dois guardas? 

Dois homens marrudos olhavam para o nada, como se estivessem ali há séculos fazendo a mesma coisa: depois de tomarem banho, se arrumarem, beijarem suas mães, esposas, filhos e tios, com os espíritos renovados da dinâmica da vida fora do hospício, batiam o cartão e simplesmente se prostravam displicentes em suas cadeiras, contando moscas e folhas secas que todos os dias eram redepositadas ali pelos manacás e ipês do lugar. Sabiam no fundo de forma inefável que todos os assuntos já estavam meio gastos pelos anos e não mais necessitavam profundidade.  

— Só estão esperando alguém se considerar doente ou curado para abrirem as portas que os próprios pacientes construíram para eles mesmos. Esses caras são meros porteiros.  

Eu observava a vivacidade do espírito daquele cara. 

— São eles os chefes, os pacientes. Os donos desse hospício. 

Observou-me com o olhar vago, traspassando-me. Foi até a parede do lado de fora do dormitório e encostou a cabeça olhando para o chão. 

— Eu costumo ficar assim no banheiro, quando estou tomando banho. Fico memorizando meu corpo. Preciso da minha consciência corporal sempre atualizada, saca? Além disso a água quente nas costas traz meu corpo para o estado perfeito pra pensar. Ajuda a relaxar.  

Que bicho estranho! 

Fez um silêncio e continuou: 

Tive a minha epifania diária um pouco antes de você 

chegar. Senti o cheiro de que o ambiente ia mudar, tá ligado?  

... não. 

— ... Você é a novidade na casa. Mas pra mim é um pouco mais porque eu me liguei que você é possuidor de um espírito macrossoma.  

Macrossoma, ok! 

— É um corpo vibracional grande, com intensidade. 

Deve ser um daqueles místicos chatos, pastores da Nova Era, que falam pelos cotovelos e com ideias sem fundamento. 

— Eu meio que saco quando o clima muda, treinei bastante pra isso. A gente não consegue apreender com a consciência todos os detalhes das situações em que vivemos. Os moradores da Lua ainda conseguem apreender mais coisas. Tudo passa pelo subconsciente e fica acumulando o dia inteiro no inconsciente até que à noite pomos tudo em suas devidas gavetas. A grande maioria das pessoas passa a vida inteira em estado hipnótico. 

Pôs as mãos no bolso e começou a coçar seu pau. 

 

Tipo assim: o segredo das nossas realizações está em 

onde focamos, certo? Mas presta atenção: posso influenciar em sua aura, em pontos frágeis, e esses pontos frágeis são exatamente aqueles em que você não costuma focar muito. Então, a vida dos outros é nossa enquanto os outros não estão em casa, certo? Certo! Isso é a informação subliminar — sorriu. 

Levou a mão ao rosto e fez uma cara engraçada, como de músico em êxtase. O cara era chato, isso sim! E retardado também! Uns papos desconexos... E eu meio que dava corda, né, dando-lhe ouvidos, ao seu fluxo alucinatório. 

— O nascimento é que nem a realização de algo. No começo é uma ideia, apenas. Tudo o que é necessário para a sua realização vai aparecendo. Oportunidades vão surgindo para facilitar o processo até que, dadas as condições necessárias, temse concretizado o intento. Segundo Goethe em sua Teoria da Metamorfose das Plantas, antes de sermos mesmo, somos ideia. Por isso acho que o projeto de nós junta-se ao de nossos pais harmonicamente, como se fosse... Como se chama? Esqueci a palavra. Mas você me entendeu, né? 

Fiz um positivo com o polegar sem saber ao que ele se referia.  

É, velho, você é interativo. Não é esquizofrênico. Pelo menos não tá surtado, eu acho.  

Anatole ou Velho (nominho filho da puta de feio!), sei lá, desencostou da parede e, ainda com as mãos nos bolsos e me convidou a andar com um sinal com a cabeça. 

Fomos caminhando pelos prédios, o da triagem e dos dormitórios. Chegamos a um pátio amplo e coberto, com um púlpito nos fundos e, mais atrás, o guia espiritual de nossos dias: a TV. Ela estava sintonizada num canal evangélico.  

Bancadas de concreto estavam dispostas uma em frente a outra, em duas filas, com uma passagem no meio onde os malucos se estendiam para receber a bênção diária. Resolvi me deitar e em pouco tempo fui tomado pelos efeitos hipnóticos daquelas vagas narcotizantes da TV e dos remédios ministrados pelo Oto. 

... Deus tem um plano pra você... 

... imagino que tem mesmo.  

Eu navegava em algum oceano plácido, num barquinho pequeno, em um dia ensolarado quando tudo se espatifou com um estalo quente em minha face. Instintivamente rolei pra trás, caí de quatro e me levantei em guarda para observar a doida da mina – tão inconsciente de seus atos como uma vaca na avenida! – balançando de um lado para o outro abraçada a um chinelo de dedos, reclamando da vida com os olhos marejados perdidos em algum lugar do teto. Os contenções correram para segurar-nos. 

Os contenções riam, porém, assustei-me pois eu não havia ficado com raiva da risada, como seria o natural a uma pessoa que se sente diminuída frente a uma situação em que foi desafiado e não provou sua superioridade na frente de todos. O que acontecera com meu orgulho? Sei lá... 

— Por quê?!?!?! — lamentava ela. — Por que eles me deixaram virar esse monstro? Agora sofro por causa deles! 

Quando os contenções pegaram-na, um de um lado, o outro de outro, pelos braços, percebi que a mulher colecionava cicatrizes. Os punhos!!! Meu Deus! Estes ostentavam cicatrizes como se ela os tivesse rasgado com diversas lâminas. Era desfigurado, com veias e vasos se misturando à salada tétrica. 

Feião de ver! 

Um dos contenções me olhou e percebeu que eu me resignara. 

A Nina tem uns rompantes desse e envolve outros às 

vezes, daí a gente trabalha dobrado. 

Sorriu e saiu puxando a mulher. 

Velho permaneceu sentado com os dedos entrelaçados sobre os joelhos, com seu olhar impassível à la James Dean.  

— Velho, essa mina fechou todas as janelas, deixou o botijão vazar, deitou-se na cama e acendeu um cigarro antes de vir pra cá. Daqui a família vai enfiar ela numa clínica particular. 

Instigou-se e acendeu um pra ele, dos que havia economizado. Eu deitara novamente. 

... Seu filho está metido com drogas? Sua vida desmoronou? Você, minha senhora, você, meu senhor, está com problemas financeiros? 

Oto batia um sino e aparecia na porta da monitoria (que era dividida e cuja parte de baixo fechada formava um balcão) para distribuir os cigarros. Os internos faziam fila e aí se pode imaginar o procedimento, né: pega-se um e assina-se o formulário-controle do jeito que dava. Básico, bem repartição pública. 

Velho costumava guardar alguns apenas para quanticamente saborear melhor seu vício. Dizia que no momento em que pegavam o cigarro os internos criavam uma egrégora de ânsia que fazia com que o tempo corresse mais rápido e, consequentemente, os cigarros iam-se também mais rápido deixando uma lacuna de abstinência não suprimida no cérebro. O cigarro para ele não era consumido completamente deixando para outras dimensões uma boa parte de suas substâncias entorpecentes. E, daquele momento em diante, a abstinência impunha em todos um mal-estar e mau-humor difícil. Como se não houvesse vida entre um momento e outro. 

Sim, o Velho se destacava entre esses caras... 

...Você experimenta momentos de profunda depressão? 

Pensa constantemente em se matar? Saiba que Deus te ama! 

O pastor atirava para todos os lados. Apelava mesmo. 

 

             Após três dias nossa internação havia terminado e nós compulsoriamente deixamos a casa de saúde. Como nenhum de nós havia um responsável para vir nos buscar, fomos liberados. 

 

Quando desembarcamos no Jabaquara, Velho parou em um bar na frente da rodoviária e comprou uma maria-mole e um maço de Eight. Andamos quase a noite inteira em direção da Paulista.  

Minha impressão negativa sobre Velho havia se diluído. Nós até que estávamos interagindo bem. Eu meio que me acostumara com ele. Ele me falou que eu era expressivo e que nós, seres humanos, registramos em nosso subconsciente as intenções escondidas dos interlocutores em nossas conversas e que isso era uma via de mão dupla. O grande problema é que nosso estilo de vida nos deixou incapazes de interagirmos em um nível mais profundo. Disse que tudo isso é muito simples e natural, e usou um exemplo bem elucidativo: se eu e você falamos sobre maçã, automaticamente vemos essa maçã, certo? Agora, se eu descrevo a imagem da metade de um limão com um pouco de sal em cima, posso apostar que você começa a salivar. É uma via de mão-dupla, isso é, consigo saber o que acontece em sua mente de forma imagética também, mas em um nível mais profundo. 

Disse-me coisas sobre a linguagem do corpo e das maravilhas que qualquer um pode conseguir quando está devidamente sincronizado com as energias do Universo: muito mais pode-se conseguir se nos identificarmos como frutos do mundo, se entendermos que todas as leis físicas ou não físicas nos são familiares, se estivermos conectados... A partir daquele momento comecei a me dar conta de que ele de fato tinha acesso a mais do que eu lhe revelava sobre mim. 

O cara não teve estudo, assim como nós, saca? Aprendeu a ler em alguma estrada do Leste Europeu, de barraca em barraca, chacoalhando em alguma caravana, com os pais e essa foi a principal ferramenta para aquele nômade se desenvolver. O cigano Anatole saíra jovem pelo mundo sozinho. Com apenas 17 anos embarcou para trabalhar num pesqueiro. Juntou um bom dinheiro e continuou sua peregrinação por terra (e haja saliva pra contar!). Meteu-se com iogues no extremo oriente, prestidigitadores da Europa e eu sei que depois de muita estripulia pela Ásia, Europa e África, veio parar na América Latina. Andou pela Costa Rica, Guatemala, Colômbia, entrou pela Amazônia com os coioteros e caiu numa ecovila em Goiás, onde se estabeleceu por um tempo até que considerável para um nômade nato. Lá, além de aprender permacultura, pôde experimentar um estilo de vida alternativo num lugar onde reinava o amor. As pessoas que lá viviam eram como hippies. Não precisavam de dinheiro e a comunidade era autossustentável e o cacete. Disse que trabalhou pra caralho lá e, quando o mundo o chamou, ele foi. Simples assim! 

O fato é que o doidão resolveu se internar por vontade própria quando veio a São Paulo. A diferença entre estar dentro ou fora de alguma instituição é que dentro você se cura pra enlouquecer de novo lá fora. Diz ser um experimentador, um cientista de diversas realidades e que queria vivenciar aquela dinâmica espiritual com os doentes mentais. Para tanto raspou as sobrancelhas. Uma modificação dessas é extremamente chocante e qualquer um ganha feições de desajustado – a falta de expressão confere ao maluco um aspecto de descontrolado, de não responsável pelas próprias emoções, como se he fosse tirada essa faculdade. – Feito isso era só apelar pra atuação, pois o teatro já estava quase montado! Faltava só o cenário perfeito. Evidentemente o bar era o lugar ideal, onde as pessoas ficam bem mais vulneráveis à sugestão, pois agem mais impulsivamente e motivados pela emoção.  

Disse que entrou num boteco da Augusta, escolheu os galinhos de briga ideais, os mais bêbados e ignorantes, cujos níveis de álcool já os fazia se sentirem os alfas e sentou-se perto deles encarando-os com jeito sarcástico. A estranheza foi geral. Esperou pelo clima de choque, esperou para que esse amenizasse – mas não até se dissipar por completo – indo para o estado do contrato tácito de tolerância social. Nesse momento começou a se mijar inteiro. A cena deveria ter sido hilária. Até a dona do bar concordou com o cacete que o Velho tomou naquele dia. O efeito foi o esperado. Para o gran finale apareceu no dia seguinte cheio de hematomas, com a mesma postura sarcástica e no mesmo horário. (Contando que a maioria começa mais cedo aos domingos – às 21h os cerebelos já estão encharcados.)  

Dessa vez a dona resolveu fazer um xabu: gritar, xingar até que chamou a polícia, explicou direitinho que se tratava de um maluco sem juízo, mais do que um criminoso. 

Quando os samangos chegaram ele estava seminu atrás de um carro na frente do bar, falando com o além. Parecia um gato assustado ali. O resultado não foi outro que não o esperado.  

Foi só pisar no hospício para acabar com toda a ceninha. 

 

Andamos por muito tempo sem que eu soubesse para onde íamos. Velho disse que conhecia um prédio abandonado numa rua silenciosa atrás de um hospital infantil lá no Bixiga e que aquele seria o lugar ideal para iniciarmos uma nova dinâmica. 

Ao chegarmos na rua, lá pelas quatro da manhã, deparamo-nos com uma edificação muito antiga lacrada com uma proteção de metal azul, contrastando com os outros prédios daquela região de gente mais abastada. A fachada estava suja e apresentava um acabamento arenoso. As sacadas eram feitas de círculos de cimento e quase podia-se tocar uma árvore linda, Tipuana, de lá de uma das sacadas do quarto e quinto andares. O azul-celeste da madrugada, já meio clareada pelo sol, com o alaranjado das luzes de fósforo, formavam uma tonalidade única e eu experimentava uma sensação lisérgica-subaquática ali. Pardais cantavam de forma semi-surda, opaca.  

O Edifício Garcia ficava na esquina da rua dos Franceses com a rua Ulisses Paranhos, sem saída, que fazia uma curva ocultando seu fim lá embaixo para quem vê da rua dos Franceses. Bem em frente ao prédio estava a parte de trás do Hospital Infantil Menino Jesus. 

Descemos a Ulisses ouvindo uma criança chorar desesperadamente. Havia uma murada enorme cercando um terreno baldio ao lado direito. Em uma determinada parte da extensão da parede, havia um buraco da espessura de um pé certinho que serviu de degrau para que nós pulássemos.  

Fomos vencendo o mato alto, voltando pelo lado de dentro, fazendo o mesmo caminho que tínhamos feito por fora até chegarmos perto da parede colossal toda suja da parte de trás do prédio. Do outro lado dava pra ver um barrancão e o Bixiga. Do meio do mato Velho levantou um maderite que estava disposto estrategicamente na entrada do pico. Acendeu um isqueiro iluminando seu rosto e pediu para que eu segurasse enquanto sacava uma vela da mochila. Descemos as escadas cheias de limo e o que descobri foi chapado: uma masmorra do século passado! Sério! Ali funcionava um minicomplexo de tortura da época da ditadura.  

Fomos passando pelas galerias abarrotadas de entulhos tão empoeirados que pareciam ser feitos de concreto numa única peça. Havia entulho demais nesse lugar. Muito! Coisa amontoada até o teto. Subimos uma escada e ganhamos um hall escuro. 

— Chapado esse pico, né não? — disse, Velho. 

Olha, eu dormi na rua durante aproximadamente três anos, mas aquilo era um bioma isolado, com várias doenças possivelmente endêmicas. Devia ter micróbio a ser descoberto ainda lá! 

No hall amplo havia uma escada larga ao lado direito de quem olha a porta lacrada da rua. Um elevador daqueles que tem de fechar a grade pra se locomover era como um fantasma submerso naquele navio naufragado nas profundezas do tempo. Ao lado dele uma ampla janela dava para um poço. Na parede oposta no poço, via-se as janelinhas dos banheiros com terminais para aquecedor virados para cima, terminando em chapéus chineses. Ao lado da janela onde se via o poço havia a porta de um apê e, até a saída, as portinholas de madeira abertas davam acesso aos leitores de consumo de água e energia de todas as unidades, banhadas por nesgas de luz vindas de quadradinhos feitos como respiros no lacre da entrada do edifício, bem no topo. 

Subimos as escadas. A balaustrada era feita de círculos de cimento, seguindo o padrão das varandas dos apartamentos, só que aqui o concreto era polido.  

No hall do primeiro andar dava pra ver o interior dos apartamentos com suas varandas ao fundo, exibindo a parte de trás do Hospital Menino Jesus, e toda a sorte de quinquilharias largadas ali como se os moradores houvessem fugido de algum desastre, deixando fossilizados todos os seus pertences. As portas de acesso aos elevadores estavam abertas revelando o poço e traziam um cheiro nauseabundo cadavérico à tona. 

Nos dois apartamentos à frente dos elevadores do segundo andar, via-se colchões e objetos para uma vida improvisada. Como se os sobreviventes do tal desastre tivessem subsistido parcamente ali antes de sucumbirem por alguma doença humana derradeira. 

O dia começava a nascer e outra criança berrava alucinadamente ao longe por causa de uma simples injeção ou por uma fratura exposta (vai saber...) experimentando logo na entrada trinta e três por cento do que permeia a vida na Terra, na real... 

Passamos batido pelo terceiro e quarto andar, alcançando o quinto. 

— Aqui é um ponto estrategicamente bom para permanecermos, pois estamos num andar alto e nosso barulho não é ouvido. 

Pensei: mas e o sexto? 

— No sexto faremos nossa estrutura de subsistência... É melhor a gente ocupar os apartamentos de finais um e dois que dão para o terreno baldio, lado oposto ao da rua.  

Entramos no 51 vagarosamente. Eu estava com aquela excitação de penetrar no proibido, no espaço de alguém enquanto esse alguém está fora. Sentia-me um gatuno. 

Na sala havia um buraco em forma de porta que dava acesso ao 52. Vários colchões estavam espalhados. Várias camisinhas usadas e já secas coladas como piche no chão, pontas de baseados, latas pra fumar pedra, um cinzeiro em forma de crânio, garrafas, roupas velhas, uma placa de sinalização pendurada, que indicava ventos fortes e, mais a frente, no 52, via-se que parte da varanda havia desmoronado deixando metade dos círculos de concreto sujo ali. 

Velho fechou a esquadria do que era a porta deslizante de vidro da varanda e que agora só sustentava uns cacos, meio que para nos protegermos de nós mesmos e não cairmos ali. Ele o cuidadoso, eu o displicente... 

Voltamos ao 51 e Velho disse empolgado: 

— Caralho! Que da hora! Esse pico é a pampa pra nos escondermos, fala aí! 

Só por hoje, pensei. O pico até que era bacana, ante a nossa situação, mas não iria demorar muito pra gente rapar dali. Se ele achava que nós iríamos ficar até que a Prefeitura aparecesse com seu brasão estampado na camisa de homens atarracados, munidos de marretas surpreendendo-nos dormindo em colchões fedidos e rodeados de garrafas de cachaça vazias, latas com álcool para aquecer a comida, papelões, jornais, as baratas, e toda a sorte de micróbios além daqueles encarregados de transformar nossos restos mortais em gás depois de uma noite de frio e prostração, devia estar drogado! 

— Me ajuda aqui. Vamos tapar esse sol com os colchões pra gente poder dormir. 

Peguei outro colchão e, tropeçando, encostei-o na porta deslizante. O fedor de mofo se espalhou e eu esperei que pudesse me acostumar rápido para poder pelo menos descansar naquele dia. Velho se sentou num colchão perto da quina da parede e sacou uma fina manta do mochilão. Fiz o mesmo com um cobertor que tinha da época da rua que havia ganhado em uma doação. Enrolei-me o máximo possível e virei para o lado. Vi ele acendendo um cigarro. 

Meu corpo estava moído, porém, minha mente estava a um milhão. Fiquei um tempo olhando para o Velho, sabendo que ele não podia me ver fazendo isso e capotei.  

 

             Um rosto verde com um capacete de metal flutuava na frente do colchão. Ao mesmo tempo, eu estava em uma festa de ciganas silenciosas dentro de um casarão. Andavam de lá para cá como se estivessem ocupadas. Os dois sonhos se desenrolavam sobrepostos e eram absurdamente vívidos. Reparei, que falava coisas sem sentido. Meu corpo estava travado e formigava. A sensação era de TV fora do ar.  

Quando depois de desesperadamente me debater, recobrei meus movimentos (não sei exatamente se dormi ou estava em numa espécie de transe) e tive a impressão de que havia sido tomado por um espírito do além. Bem na frente do colchão, um gato preto e branco, tipo o Frajola, mas com uma pinta no nariz, observava-me ao lado da carcaça de um rato. O fedor era insuportável! Virei para o outro lado e voltei a dormir, torcendo para o gato dar um fim logo naquilo.  

Uma palavra emergiu dessa experiência, ela estava escrita em minha tela mental: Nizhus. 

Quando acordei, lá pra umas três horas da tarde, o gato dormia na minha manta, enrolado entre as minhas pernas. Velho não estava lá. Fui até os colchões e derrubei-os no chão, levantando a maior poeira. O sol invadiu o local, dando aquele efeito gostoso sobre a poeira. Ouvi uns barulhos no andar de cima, Velho estava arrastando umas paradas lá. 

Fui à cozinha. Lá havia uma área pequena. Fui aos quartos e tudo o que encontrei foram entulhos. Saí do 51 e subi as escadas. Velho assobiava empolgado um improviso dissonante dentro de um dos quartos e tirava o entulho para fora. 

— Boa tarde! Dá uma olhada nesse quarto, aqui nós vamos brincar de fabricar maria-louca — fez uma pausa. — Tinha um gato passando bem mal aqui hoje de manhã, tava se contorcendo... 

Mano, esse cara é doidão... Maria-louca é um tipo de bebida destilada artesanal feito na cadeia. Fortíssimo o bagulho! 

— Ó, tem um teco de bolo lá na minha cama, que deixei pra você. Vai lá e come. 

Desci e encontrei um tuppeware contendo o bolinho de fubá com cobertura de chocolate bem vovó. Senti uma certa nostalgia. 

O gato se lambia em cima do lado de fora do quarto. Depois me liguei que ele havia cagado no meu cobertor. Naquela hora o bolo travara na minha garganta e eu me engasguei. Não fazia a menor ideia de onde eu iria lavar aquela merda. Me recompus e enxotei-o dali.  

Não podia ficar muito puto, afinal era só um gato. O que seria eu mais do que ele? Além do mais, quem foi pra rua, para o cerne do fluxo por opção para sobreviver ao pior e extrair toda a espiritualidade da extrema privação, como um Epicuro urbano? Onde estaria eu hoje? Provavelmente na casa de meus pais ainda. Bebendo, lendo e me masturbando na internet, trancado/escondido num quartinho minúsculo dentro do apartamento, ouvindo a televisão alta da sala, tendo que enfiar mulher em casa às escuras para poder ter um pouco de felação. 

Provavelmente estaria falando – uma vez que meu mutismo era fruto de um festival de pancadaria promovido para limpar a cidade. 

Considerando que eu fosse mesmo aquele tal Epicuro (que prepotência!) e se estivesse falando, o que falaria? Que bendita filosofia professaria? Todas as coisas que falei quando estava na rua, tecnicamente, antes daquele show na 14? Para aquele monte de reclamões, bêbados que perderam tudo para a cachaça, craqueiros que só sabiam era se sentirem vítimas das circunstâncias e que não conseguiam evidentemente experimentar outros estados de consciência? Eu era um deles e não havia feito filosofia. Havia me utilizado da tradição oral apenas para falar mal dos outros ou contar histórias de uma época que não existia mais, em que era um boyzinho que todas as quintas ia encher a cara num puteiro, e só.  

Os motivos que me levaram para a rua não são muitos, mas para o dotado do mínimo de empatia alguma veracidade lhe seria inspirada. Primeiro: as coisas haviam mudado em mim mesmo nos idos de 2010. Sentia-me sozinho e melancólico. Os amigos inseparáveis não estavam mais por ali. O mundão os havia tragado em seu bojo frio, onde morava a tempestade. Meu trabalho consumia-me o espírito (na boa! ninguém merece levar a vida miserável do capitalismo selvagem!). Tudo era nostálgico, percebia o valor das experiências quando tudo estava longe, já. Sentia o peso de toda a História em meus nervos precocemente cansados. A todo instante ouvia coisas, sentia presenças, às vezes sentia estar vivendo a vida de outra pessoa, estar numa obra de ficção. Era um estranhamento ante as coisas do Universo. E sentia uma piedade fora do comum, pelos que sofriam, porque eu mesmo sofria. Era autopiedoso e isso me fazia sentir que era um perdedor no jogo da vida. Nada mais que isso. 

Então, um dia a cocaína e os amigos já não traziam mais a sensação de gozar a liberdade, a juventude, a inspiração em cada golfada de ar nos pulmões, de tornar a qualquer momento uma experiência única, tipo aquele lance de que tudo é instigante. Estava começando a me autodestruir procurando a novidade em cada copo. Isso tornara-se comum, a vida de todos era igualzinha à minha e toda vez que alguém me olhava com aquele olhar de meu, levanta dessa calçada. Um dia você vai acordar! Eu pensava que eles eram caretas e errados, levavam a vida quadradinha e todos aqueles clichês toxicômaníacos. 

Comecei a sentir o peso dessa rotina nas minhas costas e – surpresa, cara-pálida! – senti-me como o boi no abatedouro e me desesperei. Cada olhar daquele carregava algo como faça algo por si, corra por abrigo – eu fiz o contrário. 

Fui para a minha real aventura espiritual, armado com coragem e a crença de que eu estava sendo movido pelas forças maiores que eu. Que até meus pensamentos e emoções eram guiados por este espírito supremo. Decidi que iria para frente de combate, para o meio do campo de batalha e sentir até onde iria a suposta compaixão divina, até onde eu mesmo iria e qual era a essência dessa causalidade. Fui para as ruas, sem-eira-nembeira, sem avisar ninguém, saí andando apenas, tipo pintudo, corajoso. 

Vivi tanta bosta que ela acabou tirando o sorriso do meu rosto. Sem saber que fracasso é o padrão, o comum (diferente é ser bem-sucedido plenamente, como se idealiza...). Eu segui a regra piamente, comecei nascendo no Brasil. 

Naquele momento, deitado no colchão daquele prédio abandonado, lembrei-me também de Paloma, uma puta desandada que trabalhava na Casa. Das várias histórias malucas que contava, daquela menina que fugiu do orfanato e trepava com um padre em troca de comida e abrigo, das prisões... Contou-me certa vez que morou por um tempo com um monte de outros marginais em um prédio abandonado perto da bocado-lixo. Contava que o pico mais parecia uma república de punks. Seria este o prédio... ? 

Passamos o dia tirando as tranqueiras do 51/2 para que pudéssemos habitá-los sabe-se-lá-deus até quando. O cheiro era um pout-pourri de mofo, cimento, merda e suor velho. Do poço o cheiro era de carniça.  

Em sua ronda pelo prédio, Velho achou uma vassoura novinha na masmorra que serviu para que varrêssemos os apês. O 52 foi eleito para que fizéssemos nossas instalações, um dos quartos foi o escolhido para que armazenássemos as coisas úteis que porventura viéssemos a achar para nosso empreendimento. No primeiro dia levantamos toda sorte de material de construção em condições de uso. Entre eles: 8 privadas seminovas, canos de vários calibres (uns quebrados ou rachados), torneiras, conexões, fios elétricos, pedaços de madeira e ferro retos; arames, chapas de aço, tijolos, um botijão, dois galões vazios de água, pneus, uma mesa e até uma bicicleta ergométrica boa achamos. 

Às 18h20 mais ou menos – o horário da libertação nacional do Velho – eu estava sentado no colchão cansado quando ele apareceu na porta.  

— Vamos pra rua! A gente precisa deixar o Universo trabalhar este pico enquanto nós planejamos uma consciência pra ele lá fora. Vamos pra festa de uma amiga. Tomamos banho lá e aproveitamos pra filar a sagrada xepa! 

Gênio!  

 

      O dia estava fechando, porém, nós nem nos preocupamos. A brisa estava uma delícia.  

O pico dessa amiga dele era um puta casarão de boy na esquina da rua dos Franceses com a dos Belgas, tendo a Joaquim Eugênio de Lima bem em frente. Contou-me que antes lá era um clube de grã-finos. O dono era um maçom podre de rico e um putanheiro, mas quando descobriu que a esposa dava pra outro havia um tempão, ele caiu na cachaça, gastou toda a grana na esbórnia e, por sorte, sua filha, (bioquímica famosa, estudou na gringolândia e foi uma das primeiras a trampar com células-tronco no Brasil) decidiu que não ia deixar o cara beber o casarão, resolveu ameaçá-lo de tomar a propriedade caso o pai não a passasse para o nome dela.  

Ao chegarmos, ela estava atravessando a rua, voltando da padaria do outro lado da rua, com uma sacolinha na mão. Estava de chinelos, shorts e blusinha, com o cabelo preso, tipo comunzaça.  

— Velho, safado! Quanto tempo! 

— Stell! Como é que tá? Tudo belezinha? 

Abraçaram-se como bons e velhos amigos.  

— Vim pra reunião. Estou atrasado na tua sua astrologia? — jocoso. 

— Nada! Na hora certinha! 

— Então, esse aqui é o Nizhus. Essa é a Stell. 

Caralho! Esse não era o nome com o qual sonhei na noite passada?!? Como é que ele sabia? Teria ele me sugerido este nome, pelos tais interstícios da minha atenção? Teria eu naquela noite agitada soltado o nome inconscientemente?  

Um gosto de metal intracraniano era a âncora insólita da realidade... 

Ela fez uma careta ante meu aspecto físico. Eu sei, os carecas haviam me zoado legal. 

Atravessamos o jardim, ela pediu para Tole segurar a sacolinha para abrir a porta e entramos. Antes mesmo de entrarmos Velho já tinha escalado o chuveiro. 

— Sabe onde estão suas coisas, né? Vai lá tirar a nhaca! 

— disse Stell. 

Ele sorriu e subiu a escada.  

A sala era decorada com elementos retrô e tinha um pédireito alto. Uns jardins de inverno em pequenos terrários, um aquário enorme de água salgada, com lagostas, ouriços, cavalosmarinhos e baiacus; samambaias, umas poltronas de veludo dividindo o ambiente e muitos livros. As cores predominantes eram tonalidades do creme, marrom e o Bordeaux. As janelas eram generosas quanto à iluminação e ao arejamento, ovaladas perto do teto. A escadaria ficava na frente da porta de entrada, do seu lado direito havia uma porta vai-e-vem, e do lado esquerdo um ambiente que era bem pitoresco: havia um quadro de um homem iluminado por um spot, provavelmente da família (que mais parecia o Alan Kardec, com o bigodinho e tudo o mais), embaixo dele havia um daqueles móveis de pôr o telefone, com um de disco em cima e o fone no chão esticando o fio enroladinho e uma cadernetinha aberta na letra q. Mas o que tornava esse ambiente especial e até certo ponto meio monstruoso é que ele estava tomado por répteis de vários tipos! Era fechado por uma tela de acrílico. Não me pergunte como ela fazia para alimentar aquele bando de animais... O que mais chamava a atenção, entre teiús, iguanas, víboras e serpentes, era uma píton reticulada albina gigantesca que se enrolava num arbusto no meio de um laguinho artificial. 

Ela riu ante a minha perplexidade e depois me falou: 

— Fica à vontade, viu. Vou terminar nossa janta. Você gosta de chucrutes vegetariano? 

Fiz que não sabia o que era encolhendo os ombros. 

— Eu tenho uma receita de família infalível. Tenho certeza de que você vai adorar. Depois te arrumo uma toalha e umas roupas, beleza? 

Esperou meu sim com a cabeça e entrou na cozinha. Sentei-me numa poltrona atrás do aquarião perto dos livros. 

Haviam vários títulos sobre diversos assuntos.  

Dava pra ouvir ela trabalhando na cozinha: porta da geladeira, algo borbulhando em um caldeirão fechado, pratos sendo colocados, talheres ao som de um radinho de pilha mal sintonizado, provavelmente na Jovem Pan AM, enquanto do banheiro o velho Anatole assoviava Mistreated do Deep Purple.  

Senti uma certa empolgação, afinal, não são todos os que têm o gosto apurado e tiveram a oportunidade de apreciar o melhor que o rock tem pra oferecer, fora da mídia lado A. A maioria é constituída de ecléticos. Lembro-me das tardes sem nada pra fazer em que nós: eu, Thomás e o Grilo, adolescentes, passávamos enfiados no quarto da casa dos pais de Miguel ouvindo lp’s.  

Minha adolescência tinha sido meio opaca. Sempre fora um moleque sem graça, tacanho que nunca teve experiências muito marcantes. Mesmo a virgindade, perdi-a numa época nada empolgante da minha vida. Isso aconteceu na Casa de Chá, puteiro do centro, perto de casa, onde eu e os camaradas supracitados frequentávamos religiosamente, toda quinta-feira. 

Conhecíamos intimamente todos os que ali trabalhavam.  

Estudava de manhã e à tarde apreciava dissolver a realidade nos vapores de inalantes ao som de Jimi Hendrix até que comecei a beber pesado, aos 17 mais ou menos. 

Quando criança já se podia prever o tipo de fugitivo da realidade que iria me tornar: gostava de ficar entocado no quarto com minhas fantasias entre as peças de Lego ou com desenhos metafísicos. Fui filho único.  

Observava os títulos nas lombadas dos livros de Stell, forçando a vista um pouco míope, da onde me encontrava na poltrona.  

Meus olhos pousaram na lombada do Tao da Física de Capra e quando levantei-me para vê-lo direito e a porta do banheiro se destrancou e de lá de cima o Velho gritou: Ângelo, aproveita a oportunidade de lavar a bunda! Na sequência Stell abriu a porta da cozinha esbaforida dizendo: Cacete! Esqueci tua toalha! 

Um dos ouriços saltou inacreditavelmente do vidro, flutuou e pousou no cascalho. 

Stell observou o volume que eu segurava e comentou. 

— Foi no lugar certo! Tem muita gente que, pra dizer que é culta, vai direto naquelas traduções toscas de Shakespeare. 

Ouvi um barulho de porta, passos, passarinhos, as bolhas no aquário e Stell escalando a escada. 

— Pegam essas edições toscas, fazem muxoxo e tecem um comentário pobre do tipo: Bom, hein! Você leu? Aí eu digo: Não tô na minha época de Shakespeare, pra encurtar o papo. Nem me digno de informar que alguns desses livros são do meu pai e que tem muita coisa que não me interessa — disse subindo. 

Ao retornar, entregou-me a toalha, roupas limpas e me informou que o banheiro era à primeira à direita. 

Não fosse o sorriso simpaticíssimo e sua generosidade eu teria achado essa Stell uma playboy excêntrica besta e metida. 

Subi as escadas e me deparei com um corredor enorme que terminava numa varanda adorável, iluminada, com um restinho de sol sobre dois passarinhos que namoravam no peitoril, gradeado ao estilo Art Nouveau. Fiz questão de parar e contar: 2, 4, 6... 8 quartos! Caceeeeeete! 

O banheiro, por sua vez, era igualmente gigante, com um baita espelho que vinha do teto até mais ou menos a altura do peito e se inclinava pra mostrar a pessoa por inteiro. Largão o bicho! Ao lado da latrina havia uma banheira à la Luís XVI cheia de uma água azul. Havia sancas de lâmpadas dicroicas em todas as paredes. Ao lado da porta estava o box, com um chuveirão, prateado, tipo os de piscina. Da clareira dava pra ver passarinhos da tarde gorjeando... 

A experiência que se seguiu não foi completamente descontextualizada, uma vez que o sonho bizarro havia sucedido aquele dia. 

Estava tirando a roupa e, a cada peça, reparava nas mudanças que a falta de valor à vida havia marcado em meu corpo. Senti, subitamente, um afeto por aquele corpitcho cheio de hematomas e tatuagens zoadas que estava no espelho. Mesmo por aquele raladão que ia do ombro ao punho e que agora já não possuía mais tanta casca para ser retirada nas horas de folga; a unha do anular esquerdo que havia sido arrancada quando fui arrastado, e as costelas quebradas, que doíam ainda na hora de dormir. 

Sorri para aquele rosto desfigurado, com o olho direito já meio aberto, o esquerdo ostentando um vermelhão na esclera, o corte na maçã do rosto que havia se transformado em uma risca vermelha... Regozijei-me e estiquei o quanto pude o lábio inchado, que outrora estava lacerado, mas cujas cicatrizes ainda raspavam nos dentes agora cerrilhados e esmigalhados. Passei o dente no primeiro molar superior direito e constatei que havia uma cúspide faltando (mais tarde naquela mesma noite eu iria perder quase todo o dente mastigando um pedaço de pão de um dos canapés da Stell). Só o furo que traspassava minha bochecha continuava resistente e sem sinal de que iria retroceder, estava feio, uma flor de carne. Ele me obrigava a comer, beber e dormir do outro lado e eu por minha vez fazia questão de não usar remédios, afinal eu era fiel à ideia que havia me levado às ruas, a de que a natureza precisava agir sem a minha intervenção. 

Quando pisei no chão ainda morno, fiquei me lembrando de como era quando adolescente. Liguei o chuveiro e uma tontura calma tomou conta de mim. Era a mesma sensação de TV fora do ar que experimentara durante o último sonho. Senti o calor confortável do vapor que fumegava e mijei gostoso um xixi amarelinho no box, um cheiro azedinho de quase limão suave subiu. Encostei a cabeça no ladrilho da parede e fiquei olhando meus pés e sintonizando meu corpo como Anatole falara, deixando apenas o dorso no curso d’água. Algo pulsava gelado e sólido no nível das minhas têmporas, como se uma barra de ferro fosse tomando espaço ali dentro, sustentando meu corpo. Era como se ali fosse um eixo rotacional no banheiro. 

Um baque mecânico e um forte empuxo fizeram com que todo o banheiro se inclinasse pra frente uns 45° me dando um susto paralisante. Meu corpo travou na posição em que estava. Ouvi uma voz metálica e um silvo agudo contínuo. 

— Aonde você chegou não tem mais volta nessa realidade. Agora vai sofrer como queria. 

Um sentimento de culpa, impotência e desespero tomou conta de mim. 

— Você queria o sofrimento da alma, né? Chegar aos limites da loucura, miséria, para se conhecer, por prazer, masoquismo. Nós não nos preocupamos com seus motivos, apenas com suas intenções. Você conseguiu! 

Tentei balbuciar algo em minha defesa, mover minhas mãos. Em resposta só grunhidos e gestos frementes e curtos, como se meus membros estivessem emparedados. Senti-me mal, tonto, em vias de desmaiar ou vomitar. Escorreguei para o canto devagar, ficando na quina entre o chão e a parede. Minha cabeça ficou no fluxo da água que caía verticalmente! 

— Por favor! — eu disse. Pela primeira vez ouvi minha voz. — Não quero mais. Juro que não quero mais!  

Minha cabeça caiu e eu babava. 

— Não nos interessa a sua identidade. Aqui vai o enigma que te salva: se perderes um braço, não se perderás, neófito, então carregas seu braço como carregas o mundo.  

Consegui pôr a cabeça um pouco para fora do fluxo da água e percebia que a voz ficava mais intensa. 

— Diga-me para onde vai a sua raiva, tristeza e angústia, ó ser pacífico? —irônico. — Agora que chegaste ao limite da destruição. Não há fronteiras deste ponto — disse a voz impassível e com certa satisfação. 

Voltei a cabeça para o fluxo d’água e a voz desapareceu. Senti que iria morrer. Permaneci com a cabeça dentro do fluxo para ver se conseguia reverter a situação. Provavelmente eu estava alucinando, tentei rastrear de forma difusa o motivo. Nada! Com certeza estava alucinando, mas por quê? 

Fui retomando a calma e as coisas começaram a voltar ao normal, como se eu tivesse acordado de um desmaio. Fiquei um tempo parado sem nada na cabeça. O tempo estava congelado. Estava aliviado por não estar pirado, por ter defendido minha sanidade de sei-lá-que-porra estava falando no teto. 

Deitado no chão do box e vendo atônito os padrões de vapor e água no vidro da porta, tive a impressão de ter visto algo escrito: Gyalpo Pehar. Devia estar viajando. 

Terminei o banho tremendo. Quando desci, de toalha na mão e roupa suja na outra, os dois me esperavam em silêncio. 

Parei na escada e disse: 

— A loucura me visitou. 

Velho deu uma risadinha. 

— Bonita voz, meu querido — disse cantando. 

— Podia ser locutor de shopping — comentou Stell. 

— É sério! Tinha uma voz no teto, o banheiro girou! 

Stell apenas sorriu enquanto Tole olhava para as mãos cruzadas sobre o colo coberto por uma calça indiana bege.  

Já estava escuro, Stell estava elegantíssima, de longo preto. Reparei que havia mais vida na casa além da nossa. Dois garçons estavam armando um bar portátil na frente do terrário – cumprimentei-os. Cozinheiros suavam na cozinha. 

Os primeiros convidados foram três. Uma mina e dois caras. Já estavam meio alegres de breja. Entraram e nos cumprimentaram. Stell pôs um jazz Dixieland orquestrado tipo cabaré na vitrola. Depois deles chegou um cabeludo de fraque e duas minas, uma de longo e a outra vestindo um tubinho vermelho, tipo anos 80, com salto agulha e gel no cabelo preso em coque. Os três estavam munidos de instrumentos musicais. Elas papearam com Stell e Velho enquanto o cara preparava a guitarra. Ele reparou que eu observava e deu um sorriso tipo me cumprimentando. Quando terminou, entrou e saiu com um copo de ponche para depois se sentar e dedilhar alguma coisa baixinho enquanto as duas desembalavam seus instrumentos. A do tubinho devia ser até sem graça em seu dia a dia, porém, lá empunhando um pistom, estava indescritivelmente chique. A outra tinha um jeito intelectual e lânguido, como o som de sua clarineta, que eu constataria depois.  

Foram chegando mais e mais pessoas chiques e com eles o resto da banda. Um baterista, um percussionista e uma tocadora de maracas linda! Em pouco tempo um som agradabilíssimo adoçava o lugar. 

A maior galera pra lá e pra cá. Stell e Velho haviam desaparecido e eu estava completamente deslocado. Muitos casais se divertiam dançando no meio do salão enquanto outros fumavam maconha e conversavam em volta de enormes narguilés dourados, com carrancas entalhadas em azul-turquesa a olhar para o fumante. Não era qualquer coisa, não! O povo fumava haxixe e skunk gringo! Como tira-gosto estavam sendo servidos canapés de creme de cogumelos, sushis de tofú negro e bolinho de legumes. Para beber ela teve a pachorra de servir sauvignon blanc francês e Canadian club com coca. 

Eu estava muito tímido. Na verdade, não era o medo de chegar naquele povo, eu era bem capaz de ser o mais agradável da festa se quisesse, porém, faltava-me o interesse em sê-lo. Era o contrário – eu é que estava rejeitando as pessoas com receio de ter de ser agradável e alguém descobrir a farsa.  

Venci o receio para o oportunismo. Queria fumar maconha. Tudo estava embaralhado demais em minha mente depois do ocorrido no banheiro. Aí fui o mais escroto e sincero possível, porém, não tão agradável. Aproximei-me do menor grupo, dois malucos meio quietos. Não me esforcei para sorrir, apenas perguntei se poderia me sentar e dar uns pegas. Os dois responderam à altura, apenas com um aceno de cabeça.  

— O que foi isso no seu rosto? — perguntou o cabeludo baforando maconha. 

— Jogando futebol... — respondi com olhar sincero. 

Foi a conta para não trocarmos mais ideia. 

Muitos pensamentos estavam me azucrinando. Eu tinha a tendência de começar a me inferiorizar quando estava chapado de maconha. Os eventos no banheiro começaram a pesar. Enquanto fumava, uma culpa por estar fumando tomava conta de mim. Bem diferente daquele alívio de quando tudo acabou e me vi livre das vozes. 

Levantei-me sem olhar pra ninguém. Estava blazé pra caralho. Andei tonto, vadiando, me escorando, peguei uma dose de uísque e naquele momento percebi que tudo o que estava subjetivo, o sutil, escapava de minha mãos, pois minha atenção ficara preguiçosa. Saquei que todos começavam a me olhar. Eu não estava no clima deles e ainda estava feio demais.  

A casa estava lotada e havia algo mais no ar. Fui ao banheiro no qual passei mal naquela tarde e haviam umas pessoas sentadas no chão bebendo cerveja em taças bojudas, enquanto duas garotas nuas conversavam na banheira imersas em margaridas e água azul. Dava um puta efeito legal com a luz negra e pétalas de dálias no chão. Em um outro banheiro vi um cara ajoelhado dando comida na boca de uma mulher sentada em uma cena fetichista.  

Reparei na luz vinda da suíte atrás de mim. Atravessei o corredor, encostei-me na parede e escorreguei até o batente da porta. Ninguém reparou em mim. Vários pufes estavam espalhados no chão e um filme noir mudo estava sendo reproduzido. Em uma mesinha estavam disponíveis vários fones de ouvido e, ao longo da parede haviam vários plugues para conectá-los. Noutra suíte as paredes estavam cobertas de grafites, de vários artistas, além de televisores que exibiam uma festa em outro lugar do mundo, onde era possível interagir com as pessoas de lá. 

Inexplicavelmente o último quarto, o da dona da casa, não tinha ninguém. Soube disso pois a porta estava entreaberta e eu, ousado na bebida, enfiei meu nariz lá pra ver. Sua cama, impecável, estava esticadíssima, penteadeira arrumada e o armário, sóbrio, eram ventilados com uma brisa fresca de começo de verão, vindo soberba da janela.  

Apesar do meu rosto bestial ninguém parecia mesmo reparar em mim, eu estava era muito louco. Cheguei a ficar com um pouco de raiva e até fazer mal julgamento, achando que aquela gente era uma cambada de boy metida a intelectual. Mas na verdade estavam apenas curtindo. O viciado em emoção-aqualquer-custo era eu mesmo, abafando o bem-estar que poderia vivenciar não fosse a necessidade de atenção e de todas a mesmas inas corporais que busquei pra preencher as lacunas da realidade que não suportava, abertas por mim mesmo. Mesmo sabendo da minha crise, não foi fácil estabelecer uma empatia com meus convivas, talvez por orgulho. 

Descolei um uísque cowboy. 

Desci as escadas de novo e percebi no ar dois tipos de climas: o dos que estavam intoxicados e de um pessoal extasiado, porém, sóbrio, gozando de um bem-estar quase cósmico. Um jeito feliz de olhar, em outra estação, como se soubessem algum segredo acessível a todos que desejassem alcançar o nirvana. Só de olhar dava um calor. Senti certa inveja desse povo explicitamente diferente de mim. 

Essa galera estava concentrada, ou virada em direção da cozinha e, diferente do povo que já estava deitado no jardim da frente da casa, seminus e falando alto, esses quase não falavam. Entendi o porquê eu ainda não havia ido à cozinha: um puta congestionamento restringia o acesso ao lugar. Algo estava acontecendo que prendia a atenção daquelas pessoas.  

Fui vencendo lentamente, macio, como se aquela massa de pessoas fosse feita do ritmo da música. Finalmente cheguei ao foco da atenção. Havia um espaço entre as pessoas e a pia. Encostados e silenciosos, estavam Anatole e Stell, sorridentes – perfeitos anfitriões. Olhavam para mim como se há muito me esperassem ali. Ao lado da pia havia uma gaiola dourada que se sustentava no chão de forma quase paranormal pela espessura da haste que a segurava de pé e pela quantidade de voltas que dava até pendurar a gaiola, como uma gota de ouro. Era como se alguém tivesse desenhado no ar com o dedo e um artista houvesse capturado o trajeto com sol. Naquela gaiola sem portinhola dois canários descansavam de seus passeios diurnos sossegadamente com suas cabecinhas enfiadas em seus ombrinhos, de olhos semicerrados, alheios a todo o burburinho em torno. 

Fiquei meio constrangido, sem motivo, pois eu era quase invisível ali. Pensei em falar alguma gracinha. Mas a provocação me tiraria a oportunidade de vivenciar mais plenamente aquele momento já bastante incomum e trazê-lo para o meu mundo previsível e angustiado. Eu havia sido apenas a minha vida até ali e não a vida ao meu redor, por isso eu sofria.  

Aí, do nada, a porta debaixo da pia se abriu e um casal saiu de lá de dentro. Anatole, solícito como um anjo barroco psicodélico, disse-me: 

— Sua vez — e apontou para uma escada helicoidal vinda lá de dentro. 

Desci a escada que dava no canto escuro de um salão onde várias pessoas estavam deitadas no chão acolchoado perto da parede. No meio desse salão havia uma espécie de caldeirão enorme, pós-moderno, transparente, que mais parecia uma engenhoca de onde saíam fios e de onde um líquido translúcido borbulhava.  

Alguns dançavam, outros cantavam alto ou entoavam mantras. Havia um que, sentado no chão de pernas cruzadas, parecia uma estátua entoando uma ladainha melancólica olhando para o alto, com o dedo também apontando pra cima. Outro desfilava em círculos chamando Alá. Havia os que tremiam, os que rodopiavam, os que rezavam ajoelhados com a mão no coração e os que gritavam. Uns, mais perto da parede, davam as mãos e balançavam de um lado para o outro. Eu não podia simplesmente desclassificar todo o negócio. Era forte mesmo.  

No alto havia uma cúpula ornada com vitrais de nus inexpressivos, fovistas, intimidando com o olhar marrom os que embaixo se pusessem a fitá-los. 

Senti como se fosse da natureza humana estar naquele estado em que eles se encontravam. Eu não estava daquele jeito (ainda?!). A cantilena que abafava o som de fora era bem contrastante.  

Eu procurava um conforto de dentro das minhas roupas e algum lugar para simplesmente apenas ser apropriado quando do meio da penumbra surge uma mina que se dirigiu a mim. Linda a pessoinha, cabelo castanho-claro, corpo sem exageros, vestida com panos hippies, da saia ao prendedor de cabelo, pés singelos enfiados em sandálias de couro. Perguntei: 

— Essa é a hora em que eu tiro a roupa e saio voando? 

— Se você quiser... Fica a vontade. Estão todos fora de 

si. 

Sorriu. E me quebrou as pernas também...  

— Também sou novata entre os Dhaens.  

Fiz cara de interrogação. 

— Ninguém te falou nada sobre eles? Como foram seus últimos dias? Alucinou bastante?  

— Pra caralho!  

Riu-se gostoso. 

— Eu também, você não tem noção. Alucinava toda hora! Dentro do ônibus, andando na rua, apagava e voltava a mim em lugares estranhos. Um dia apaguei na Zona Leste e fui dar conta de mim em cima de um terraço na Vila Madalena, no beiral. O prédio tinha 25 andares!!!! Quase morri do coração. A polícia já estava atrás de mim e o caramba! Todos haviam ficado preocupados. — Olhou bem pra mim, algo lhe ocorreu. — Você nunca veio aqui antes? Não conhece os Dhaens? 

— Dhaens?!?! Vim pra curtir a festa. Depois me liguei que tinha esse fluxo vindo pra cozinha e resolvi meter o nariz pra dentro do armário pra saber qual que era.  

— Ela não te falou nada?!?!?! Ai meu Deus! E agora? O que eu faço? Vou falar com ela, é melhor. Ela vai saber o que te dizer. Tô com medo de falar algo errado. Peraí. 

A menina saiu correndo batendo as sandalhinhas por entre os corpos alucinados e subiu as escadas. Um momento depois voltava com Stell que se sentou bem na minha frente de pernas cruzadas, sobre um almofadão feito de khadi, um tecido indiano. Segurou em minhas mãos, olhou bem para todos ao redor, satisfeita e sorriu para mim. Senti um quase arrepio, tipo um calor, um enlevo.  

... o horizonte oblíquo é curto e quase lunar... 

— É o seguinte: esses lances todos que você está tendo, sabe? Todo mundo que está aqui já teve...  

... a câmara de controle encravada no meio da floresta 

vertical, insólita... 

— ... essas alucinações são parte de um processo irreversível mas que pode ser negligenciado e adiado, mas isso só vai se estender por mais encarnações.  

Fitava-me de olhos bem abertos, com a boca espremida, esperando uma reação minha para depois prosseguir. Segurava firme minhas mãos como se as dela me convidassem toda hora para fazer parte de sua aventura pessoal. 

— Então, o que você está vendo aqui não é um ritual, não é uma orgia, não é delírio coletivo...  

... ar plúmbeo, opaco, silencioso como que após um estalido... 

— ... trata-se de um processo, essas pessoas estão aqui e em outro lugar ao mesmo tempo. É uma egrégora espaçotemporal. Sabe, seria difícil explicar...  

... acúmulos animados de energia iam a vinham pela paisagem... 

-— ... se você não tivesse o background místico. 

Stell levantou-se sem pôr as mãos no chão. Viu-me de cima altiva como sacerdotisa em semblante marmóreo em túnica dourada, como a Hygieia de Gustav Klimt. Aproximou-se da grande tina automatizada e tirou um copo do líquido que ali borbulhava. 

— Isso aqui é um potenciador radiônico quântico. O nome é bem-feio, né? Toda matéria inanimada é um biônio em potencial. O que isso significa? Significa que a matéria pode acumular e retransmitir energia vital de forma quântica. Você deve imaginar que nós somos ao mesmo tempo vibração e matéria tangível. Depende do seu nível de consciência... 

A amiga e o cigano Anatole eram um casal muito estranho. Aquele tipo de casal que não dá pra imaginar se trepam no planeta Terra ou em Netuno. Tamanha era a estranheza que os figuras causavam em mim. 

— ... os biônios potencializados também têm a capacidade de se harmonizar a sua vibração constitutiva e astral e retransmitir sua estrutura energética a outro plano no Universo conhecido de forma não-local.  

Agora ela fodeu com a coerência... Comecei a fantasiar com a hippie. 

Levantei meio farto daquilo, dei a mão para Stell, agradecendo-a, dei-a para a gostosa também, perguntando-a se ela me acompanharia – disse-me que infelizmente não, pois aquilo era importante para ela – e dirigi-me para a helicoidal chamando-a de fresca do caralho! Mentalmente, é claro.  

 

             Ganhei a rua rápido, bêbado, cantando alto. Parecia um louco na silenciosa rua dos Franceses. Voltei sozinho para o prédio experimentando um certo medo dentro daquele pico soturno. A masmorra era arrepiante, dava para ver um monte de vultos lá, além do mais eu estava naquela desconcertante condição de alucinado — vai saber o que poderia acontecer lá dentro! Ainda bem que estava bêbado. 

Ao chegar no quarto tirei a roupa e fui direto pro colchão. O gatinho no escuro observava fixamente algo na parede. Com certo esforço pude reconhecer no breu uma linda e enorme mariposa pousada inocentemente. Deveria ter o tamanho de pelo menos as duas palmas minhas juntas. Era uma monstrona linda! Puxei o gatinho para fora. 

Já não fazia planos a médio e longo prazo. Como consequência disso já não vivia em função de muitos problemas ou questões a resolver. Era o agora e pronto, acabou! Concordando com essa ideia podia me sentir satisfeito, uma vez que havia comido os canapés da Stell, que meu colchão estava por lá, que estava de banho tomado e que havia um teto sobre mim. (Por falar em banho tomado era preciso dar um jeito de arrumar um bom chuveiro no prédio. Deveria ter um pelos apartamentos. Tanto banheiro, não é possível que em nenhum houvesse um chuveiro em condições de ser usado com alguma manutenção! No dia seguinte faria uma busca...).  

Sempre quis ter a consciência do exato momento em que adormecia. Queria ter pelo menos uma experiência em que pudesse dizer com certeza e então, nesse exato pensamento, sou arrebatado pelo sono. Mas sono é um processo, um continuum, para quem dorme não há pontos precisos no sono. O continuum pode ser expresso até nas coisas estáticas. Entre os arbitrários ying e o yang há uma miríade de variações que tornam a vida tão rica. Aliás, matematicamente, as variações entre um oposto e outro dependem só dos algarismos significativos que são considerados. Alguns diriam que é absurda e fria a beleza de um algoritmo aplicado a uma parábola que eternamente se aproxima de um eixo sem nunca tocá-lo. É como o toque de Adão de Michelângelo ou O Beijo de Rodin. São os algarismos significativos que separam os universos paralelos, que determinam se neles haveria a possibilidade de vida. Se considerarmos que o chimpanzé divide conosco 99,6% dos seus genes e misturarmos ao delírio das probabilidades encarnatórias a causalidade e o tamanho do elo perdido entre nós... 

Eu divagava e a quase dormência ia além de mim. Tudo o que eu havia vivido até aquele momento havia aberto o espaço para que eu pudesse romper essa barreira do possível.  

— Cara, o engraçado é que estamos dizendo ao mundo que não abriremos as pernas para todos os embusteiros do Sistema, por uma questão de necessidade.  

— Uhum — resmunguei. 

Tole me acordara trazendo seu colchão para meu quarto para que dividíssemos o último cigarro da noite. Iluminados pela lâmpada do abajour de porcelana bege no meio do quarto, eu o ouvia deitado sem piscar, completamente absorto na ideia dele. Ele estava sentado e a fumaça confundia-se com seus cabelos molhados que a emanava na contra-luz. 

— ... aí é o seguinte: a gente está trazendo de outra dimensão este tipo de de subsistência urbana e por isso somos moralmente responsáveis por ela, uma vez que ela já está energeticamente impressa na consciência universal, se é que você me entende. 

— Na verdade não entendo muito, não. Eu sei que existe todo aquele papo junguiano de que os macacos daqui aprenderam a abrir o côco ao mesmo tempo em que os macacos de outro país, quero dizer, separados pelo mar, né. Tudo bem. Então você acha que tudo o que foi perdido na Biblioteca de Alexandria está automaticamente recuperado no inconsciente coletivo, por exemplo? Que não foi uma perda? Que não há perda? 

Estávamos verdadeiramente bêbados, viajando. 

— Cara, sei lá se tá tudo recuperado, eu sei que o conhecimento da Biblioteca já estava disponível para a Humanidade bem antes de ser concebido. Não sei se os livros estão disponíveis integralmente, com aquela mesma edição e blá, blá, blá — disse Tole, enfático e expansivo com as mãos, para depois retomar o tom monótono —, mas o mais importante da Biblioteca não eram seus livros e nem o conhecimento ali obtido, mas a evolução que ali estava concretizada. Quando eu aprendo a fazer uma conta de matemática e registro o documento, valido esta conta publicamente, de nada vale este registro porque há todo um fluxo universal por trás de mim para que este fosse o contexto certo para este tipo de cálculo ser desenvolvido na Humanidade. Se não fosse eu a desenvolvê-la, outro mais conectado a este contexto o faria. 

— Mano, acho que cê tá viajando. Tem um monte de coisas que a gente não sabe, por exemplo quem matou o Kennedy? Como morreu o Adolf Hitler? E sobre as evidências de Roswell, que foram guardadas pelo exército americano, será que alguém além dos militares envolvidos sabe exatamente o que tem lá no quartel-general dos caras? Sei lá, mano, acho que não é assim como você fala... 

— Posso estar, não sou o dono da verdade, velho, mas se liga: uma vez fizeram um experimento com duas pessoas que não se conheciam e meditaram juntos por algum tempo. Depois elas foram enclausuradas em ambientes hermeticamente isolados. Tipo elétrica e magneticamente, saca? Aí uma delas recebeu alguns estímulos enquanto a outra não. No escaneamento cerebral das duas, quando sobrepostos, apresentavam praticamente as mesmas alterações, tipo assim, o mesmo desenho, entende? — pôs as mãos sobrepostas. 

— Sério? 

— Uhum. 

Pensei por um momento. Fiquei de certa forma satisfeito de saber que estávamos interligados uns aos outros dessa maneira e que nem tudo o que falavam na escola era verdade. Eles diziam apenas a parte conveniente da verdade. O fato triste é que há um mercado sujo com produtos quase personalizados para todo tipo de personalidade e nós nos incluíamos. Não éramos grandes em nada e nem pretendíamos ser. Não iríamos fazer nada para contestar o sistema nem com raiva, nem com nada parecido, mas simplesmente éramos movidos por uma mistura bem característica entre necessidade, criatividade e ímpeto. Aliás eu falava por mim, né. Sei lá o que se escondia por trás de toda a humildade de falar do Tole. 

Dormi no meio do papo, com aquele cheiro de sarro de cigarro enganchado em minhas narinas. 

 

Com o passar dos dias  meu rosto foi voltando ao normal, o buraco na bochecha (que me deu um trabalhão por durante pelo menos um mês, tendo que tomar cuidado para mastigar e beber do outro lado...) já dava sinais de que fecharia. Meu corpo ainda doía, principalmente na região do tórax, do lado direito, quando eu fazia força. Trabalhava com o Velho e tudo ia harmonicamente entre nós. Não havia briga, discussão, nós gostávamos das mesmas coisas e abríamos mão de termos razão de vez em quando na maior boa-vontade, em prol da convivência.  

Começamos um coletor de água da chuva no terraço, com uma lona de caminhão velha. Depois de lavada e re-lavada no posto de gasolina a gente impermeabilizou-a com um spray especial e esticou-a. Começamos a armazenar água que descia por canos externos até o sexto andar, lá era armazenada em galões velhos em um quarto. Havíamos desenvolvido um coletor de água da atmosfera também, inspirado nos coletores feitos de bambus amarrados em forma de vaso por fora e por dentro uma rede de microtúbulos de nylon e polipropileno (Velho, havia conseguido o material em uma de suas inúmeras viagens e, pelo jeito já havia usado anteriormente), o Warka Waters da Etiópia. 

Foi inventado por um designer italiano, Arturo Vittori, e condensam água diretamente do ar. Por dia conseguíamos em média uns 50 litros d'água, pois, sendo esta uma versão em miniatura, não conseguia atingir os 100 litros coletados na África. 

Ainda no terraço havia um gerador de energia eólica feito de telha de zinco cortado que fazia girar uma bobina grande, com dois imãs de caixa de som de 1000 watts no meio, presos em torno de uma barra plástico lubrificada com vaselina e um aquecedor feito de garrafas pet, caixas de leite vazias e canos de PVC.  

No mesmo quarto onde era armazenada a água, mantínhamos nossos alambiques de maria-louca, oito privadas lotadas de cascas de frutas, arroz e fermento para fazer a cachaça cadeieira. Cada uma produzia mais ou menos 1 litro de dez em dez dias e o gosto não era dos piores, era mais amargo que o normal, porém tragável. Tudo ficava na mesma sala que o biodigestor concebido pelo nosso amigo Velho. Era um botijão de duzentos litros com um manômetro simples e três saídas: uma de chorume, um alimentador e um cano com um bico controlador que era a saída de gás. A temperatura dessa sala deveria ser quente por conta do alambique e do biodigestor. Ali havia um gerador a vapor construído com ventoinhas, para o caso de faltar energia. Ele dizia que era quase uma obrigação qualquer um saber construir um daqueles, fora a primeira máquina do mundo e uma das responsáveis pela Revolução Industrial no século XIX e era bem como a invenção do fogo e da roda. A máquina à vapor concebida por James Watt no século XIX era mais do que uma herança, era uma habilidade humana adquirida.  

Não havia porque faltar energia, uma vez que nosso consumo diário era ínfimo e nossos equipamentos podiam suprir nossa necessidade. Usávamos energia eólica para tomar banho (a água era esquentada com um fio resistor que ia dentro de um balde com a água). Para a iluminação de nossa sala e, para o aquecimento da sala do biodigestor e do alambique, usávamos água esquentada no aquecedor do terraço de manhã e, à noite, um aquecedor feito de resistência de chuveiro, sendo que o layout do quarto permitia que as privadas ficassem em círculo em volta dele. Era preciso uma super-vedação no biodigestor, pois uma vez que houvesse vazamento de gás metano – BUM!  

Toda a energia produzida era armazenada em baterias de carro que ficavam dispostas fora do quarto por motivos de segurança e de lá saíam fios para alimentar tudo o que precisávamos.  

O alambique funcionava em ritmo de turnos para que pudéssemos ter quase todos os dias cachaça nova sendo produzida. O biodigestor precisava ser realimentado sempre uma vez que não produzia muita energia. A proporção era de 20 quilos de bosta para cada 1 metro cúbico de metano, o que era equivalente a um quilowatt, porém era mais do que suficiente para que cozinhássemos.  

Aquilo sim era uma dinâmica, um organismo pulsante onde eletricidade e bactérias compunham órgãos e sistemas. Não éramos meros subsistentes ali, consumindo e morando. O lance era saber qual era nosso papel dentro do biodínamo. Essa questão nos obrigaria a sair do ciclo para que pudéssemos vislumbrar a resposta.  

Meu quarto era a sala do 52 bem embaixo do apartamento do alambique e o do Velho a do 51, o apartamento ao lado ao meu, sendo os dois do lado sul.  

Saíamos todos os dias de manhã a procura de bosta de cachorro fresca e restos de comida e cada um fazia uma coisa tomando cuidado para não contaminarmos um com as bactérias do outro. Os restos de frutas eram coletadas em lugares estratégicos como lixos de supermercados, mercadinhos, shoppings, restaurantes e armazéns. Nesses estabelecimentos tínhamos certeza de que sempre haveríamos de encontrar comida boa, pois os comerciantes estão comprometidos logicamente com a venda, por isso são vários fatores incluídos na seleção do alimento e, dentre eles estão a aparência – que era um fator que não nos importava. Nas feiras dividíamos a coleta com um monte de outras pessoas e cães, mas nós éramos profissionais e especialistas. Estava virando quase freegans, pois sempre achava comida boa no lixo e no fim do dia tinha uma boa quantidade de frutas que só precisavam de uma lavadinha ou um talhinho para retirar a parte podre. Quando não conseguíamos a coleta necessária para matar a fome, Stell sempre representava com a refeição. Às vezes Anatole aparecia com uns ramalhetes de florezinhas e mato na mão e só pedia-me para que lavasse para nós comermos. Só depois falava que eram ervas do nosso quintal, o terreno baldio atrás do prédio. 

— Quando você viaja, ou vai morar em algum outro lugar, precisa saber como vai comer, não é? O primeiro local onde as pessoas deveriam ir consultar e onde elas nunca vão fazer essa consulta (a grande maioria nunca foi), meu querido, é no catálogo de plantas oficial desse lugar.  

Fez uma pausa. Deu uma mastigadinha, apontou o garfo para mim, naquela posição clássica, com o cotovelo na mesa, mastigando um restinho ainda, e continuou. 

— Sabe um suquinho gostoso, mas ninguém ainda se deu conta disso porque tem muito preconceito de experimentar? — continuou. — O suco de grama! Não que isso signifique alguma coisa, mas os animais que nós comemos se alimentam desse tipo de coisa. Isso por si seria pista o bastante para sabermos que esse tipo de alimento é sim bom para a gente. E digo ainda mais, foi da grama que evoluiu o sagrado trigo! — disse, acentuando ironicamente o sagrado. 

— Arrasou, mano! Nunca tinha pensado dessa maneira. De onde você tira essas paradas?  

— Da necessidade. Dela e da indignação de ter nascido num mundo onde preciso pagar com sofrimento para existir nele. Você não acha que alimentação é direito nato do ser humano? 

— Claro que eu acho!  

— É só dar uma passeada lá atrás que você vai encontrar um monte de ervas boas para comer — ele fez uma pausa. — Velho, nós vivemos na Era da Informação e você não precisa ir até a biblioteca para consultar qualquer coisa. Tá tudo ali, na tela do computador!  

Sim, ele era um perigo para o Sistema. Conseguia enxergar a mentira na qual todos estávamos enfiados dentro, achando que se saíssemos dela, morreríamos. A mentira das fronteiras entre as pessoas, o poder destrutivo de um passaporte, uma bandeira, de um livro como a Bíblia e, é claro, do nosso campeão, o dinheiro. 

A real é que estávamos produzindo cachaça e começamos a abastecer alguns lugares a um preço formidável, afinal sempre existem aqueles bêbados de fim de noite que não têm dinheiro pra pagar, então, nossa cachaça até que vendia bem entre esse público. Quero dizer que sempre tínhamos dinheiro para o básico, como cigarros. Mas quase nunca o usávamos exatamente por termos a oportunidade de fazer a maioria dos produtos que consumíamos em casa e cuja receita encontrávamos sem crise na internet da casa da Stell. Por exemplo: a pasta de dentes era feita de casca de laranja (que achávamos todo dia no lixo, uma parte ia para as privadas), bicarbonato de sódio e sal; os sabonetes ou desodorantes eram feitos com camomila e mel.  

Os ingredientes às vezes eram trocados por cachaça nos próprios estabelecimentos. Velho até preferia assim porque como o dinheiro era mais importante do que os produtos para os comerciantes, estes tendiam a, se não aceitassem a cachaça num primeiro momento, aceitá-la como uma barganha para trocar por outros produtos, às vezes até com a embalagem meio consumida (o que desvalorizava ainda mais o produto aos olhos do comércio).  

Fazíamos muitas coisas sempre da forma mais natural e local possível. Velho dizia: o fato de preferirmos um iogurte que vinha da Finlândia ao invés de optarmos por um daqui, caseiro, fazia com que evitássemos que os EUA invadissem o Iraque atrás de petróleo...  

Um dia, ele me disse que a bebida era um luxo e que luxos são destrutivos e, como estávamos todos conectados, se eu me acabasse na bebida estaria me deteriorando em nome do luxo, de uma emoção barata, do jeito que estamos fazendo ao mundo. 

Eu, por minha vez, tomava consciência do meu papel no mundo com esse cara a cada dia que passava. E isso era difícil para mim, pois cada vez mais eu me via mais claramente numa armadilha que eu mesmo criara e da qual não conseguia sair impunemente, por causa da minha racionalização e da justificação dos meus vícios a partir da rebeldia e do fatalismo.  

Eu me achava o extremo moral antagônico da humanidade, o outro lado da balança fadado a um determinado tipo de fim por aquela função... Eu era o carrapato no sovaco da sociedade. Estava em decadência, minha alma em declínio, bebendo todo dia, sentindo o fígado reclamar, náuseas, queimação e dores constantes do lado direito da barriga – achava que era um câncer no intestino. Além do mais, meus dentes se quebravam com frequência de tanto bruxismo diurno e noturno.  

Arrumava receitas médicas para ansiolíticos benzodiazepínicos, estimulantes, soníferos, analgésicos fortes, misturava tudo e passava o dia fora do ar; metido em tudo o que é pocilga, dando vexame no meio de ambientes de energia baixa mesmo, suicida, em buracos abandonados e cheirando a bosta e chulé de dias; entre putas, traficantes, ladrões, gente foragida, fugitiva; atrás de crack. Ficava lá me escondendo a noite inteira atrás de paredes, portas, escutando passos que não haviam sido dados, respirações fantasmas e vozes sepulcrais. Aí quando batia o medo eu tomava um mata-cavalo e saía perambulando. Acordava em praças, estações de metrô, frente de igrejas, às vezes com mendigos me perguntando se eu estava bem ou sendo cutucado pelos bicos dos sapatos de vigias, seguranças ou porteiros me pedindo para ir dormir em outro lugar. 

Minha vida amorosa havia se resumido a um envolvimento com uma craqueira chave-de-cadeia com quem eu andava pra cima e pra baixo. Só não levava ela para o prédio – alegava que eu morava com meus pais. Às vezes ficava com ela no moquifo de conveniência dela, no treme-treme, numa travessa da 14 Bis (camisinha era um item raro entre nós e eu sabia que entre ela e o inquilino oficial do apê também...).  

Faltava-lhe alguns dentes e outros estavam podres. A gente passava a noite atrás de pedra e bebida, raramente ela arrumava algum programa entre os desesperados pela última oportunidade de sexo da noite e eu a esperava debaixo do viaduto para depois irmos fazer o corre na cracolândia. Ela achava que eu era playboy e que eu arrumava dinheiro fácil, mas a verdade é que virava e mexia eu arranjava algo perdido no lixo ou no prédio para trocar por pedra ou, como costumava dizer, pra pôr no cachimbo. Além do mais às vezes eu virava algumas cartelas de remédio entre os traficantes para que eles mesmos pudessem sossegar, aí eu fumava mais pedra. Nunca pegava as coisas do prédio por uma questão de respeito a Anatole. 

Até que era engraçada a menina – uma completa tonta para qualquer assunto menos raso – mas até que intuía as coisas por baixo do verniz social e sabia o porquê se suicidava também, só não sabia exprimir direito. Então desencanava da parte da expressão e apenas submergia nos eflúvios alquímicos da droga.  

Velho sabia de tudo tim-tim por tim-tim e de forma coerente e pacífica desmistificava todas as desculpas que eu dava para ser um rebelde desandado. Até mesmo o rock, nossa paixão, era vista por ele como sendo uma justificativa agressiva e neurótica para perdermos o controle e/ou como sendo as mil e uma maneiras de reclamarmos o peito da mamãe.  

Eu estava sendo a manifestação e a causa da febre no mundo. E com isso, passando a mensagem subjetivamente de que é preciso se destruir para se salvar. E não entendia o porquê da Terra estar sofrendo! O superaquecimento global acontecia também porque pessoas como eu eram emotivas e neuróticas demais, enchíamos a cara e estávamos à mercê de tudo quanto é emoção barata em nível exagerado (teríamos o temperamento superaquecido?!). 

A medida do tóxico que se dispersa na Terra é a mesma da que se dispersa no sangue. A bebida e as drogas eram luxos caros. Éramos uma geração de frustrados por ter de encarar a realidade como ela era, trabalhando de segunda a sábado, sem mérito, não sendo mais e nem menos do que ninguém, num país cagado. Tendo que provar nosso valor pela quantidade de coisas que compramos – e queríamos mais e mais! – exaurindo tudo o que pudesse nos ser dado sem pensar nas consequências. 

O rock sempre fora uma saída emocional, uma compensação, é como se fosse algo que enaltecesse e sublimasse o infortúnio de não ser reconhecido socialmente, de não se ter glória, de não se suportar ver o sofrimento que havia no mundo. A minha oração pessoal era a que punha em cheque toda a teoria da salvação onde eu apostava todos os meus créditos: foda-se! (com exclamação, senão seria qualquer outra coisa, menos rock). Qual seria a finalidade desse estilo senão ser a maior expressão da não aceitação da realidade sustentada por emoções tempestuosas e caóticas, pelo exagero? Seria ele o protocolo para a perda do controle? Quais seriam as relações com a vontade de destruição e com as drogas? Até que ponto a rebeldia é válida como expressão da indignação frente ao que a sociedade nos põe à frente? Até onde essa indignação pode mudar alguma coisa? Até onde essa atitude era reincorporada pelos governos, via indústria, para realimentar o ciclo vicioso da exploração e destruição? 

Era com essa atitude que eu ouvia bêbado Open Up And Bleed ao vivo no Whiskey A-Go-Go da nossa banheira, quando Anatole havia chegado. A noite estava quente. Essa faixa era especial para mim. Nela Iggy Pop berrava a miséria de se andar por esta terra. A angústia estava condensada nesse vidro gelado. Eu cantava alto. Fazia backing vocals, bateria, baixo e o caralho. Tudo com aquele inglês de terceiro mundo. Whatever!? Aqui a angústia era um pouquinho maior...  

A água estava há um tempão já, meio mijada. Eu cantava alto, falava alto, xingava as minas que não queriam ficar comigo, as loiras vagabundas e fresquinhas de academia que almejavam status e grana, os ricos, a sociedade vendida que não me aceitava, batia punheta e parava no meio, tomava mais um trago, encostava o queixo no ombro e ficava babando. Breacão. Dormia um pouco. Tudo isso quando o Velho chegou.  

A última noite do Velho foi igual a qualquer outra noite da vida dele. Apareceu no banheiro com um prato de comida: arroz, feijão e uma verdura – vacilão! Eu ria alto com a minha situação, estava muito louco ouvindo The Stooges. Quando The Passenger começou, eu imitei Iggy de pé com o frasco do xampú, com aquela pose dele com uma perna menor que a outra.  

A noite estava gostosa, quente, com uma brisa fresca entrando pela janela. Haviam alguns insetos, mas não em demasia, como no veraozão. Era o tipo do dia perfeito, uma alegria leve pairava sobre nós. 

Fui até a sala pingando sobre o chão que era meio piso de cimento meio carpete de barbante marrom. Tudo devidamente limpo.  

Dei um berro irresponsável pela janela para fazer graça e fiquei de pé no parapeito balançando, encarando Anatole que permanecia apenas rindo da minha cara.  

— Aí, passa mal, sai daí! — dizia com a boca cheia. 

— Cadê o vinho novo? Cadê!?! Cadê o vinho novo...?!?!? Dying on the vines! — eu cantava, pendurando-me para fora como Val Kilmer no filme The Doors, do Oliver Stone. Ríamos. 

— Você não aguenta nem com o vinho velho, mano! Tá quase gorfando aí! 

— Esbórniaaaaa!  

Deu para ver sob a luz incandescente uma careta no Velho, meio enjoado. Estava sentado numa cadeira de vime que fizemos renascer. Era confortável. Do ângulo em que estava tinha uma visão do banheiro e ao mesmo tempo da sala.  

A brisa leve chacoalhava a Tipuana, jogando a sobra da sua suave cabeleira dentro da sala iluminada apenas por uma lâmpada de 40 watts em um abajour de arame retorcido no chão.  

Velho deixou o prato de lado e recostou na cadeira. 

... sua sombra vinha como que há quilômetros de distância lentamente...  

Eu voltei para a banheira já seco e com uma ótima sensação. A brincadeira de rockstar já tinha dado o que tinha que dar. 

... Gimme danger little stranger and i feel your disease... 

— A Stell perguntou de você — disse com a cabeça recostada ao ombro, meio que afastando o mal-estar. — Faz tempo que você não aparece. Ela gosta de você. 

... seus membros começavam a ficar cada vez mais entorpecidos... 

— É, eu também gosto dela. No começo pensei que fosse só mais uma playboy arrogante, mas ela tem algo. Ela tem uma estrelinha com ela.  

Iggy Pop cantava o último... got to feel it, danger... e na sequência do nosso pequeno MP3 começou a tocar um ao vivo de Coltrane em Paris, de 1965. Sorri de gratuita satisfação. 

Parecia a comemoração de algo.  

Parei e medi rapidamente as consequências do que eu estava prestes a perguntar. Velho puxou o ar para dizer algo, mas eu, sem querer, atropelei seu ímpeto. 

— Então, e vocês dois, qual que é? Não é só amizade, né? Tô ligado que não. 

— Ah, Velho, a Stell é uma mulher e tanto. Amo a Stell. 

— Mas vocês dois têm alguma coisa? 

— A gente tem a plena consciência da efemeridade das relações, mano. Nunca me apeguei a pessoa alguma. Apego é igual a sofrimento. 

— É, eu cresci sob a sombra dos padrões sociais... — parei para pensar na palavra adequada. — Convencionais. 

Molhei o rosto, bebi um gole de cachaça, fiz careta para o amargo e continuei: 

— Minha mãe e meu pai foram casados durante 17 anos. Tempo o suficiente para eu aprender esse tipo de comportamento, mas alguma coisa aconteceu no meio do caminho. Entende o que eu quero dizer? Tipo assim: na adolescência eu ouvia Legião, saca? Aquela coisa do adolescente que até queria se envolver no lance convencional, mas que tropeça na inadequação aos padrões sociais no meio do caminho. 

Ele acompanhava entrecortando o papo com sei. 

— Eu até namorei umas minas, mas sempre fui muito tímido.  

— Sério? Eu entendo você. 

— Então, aí eu descobri a bebida.  

— Fodeu com tudo? 

— Mais ou menos. Cometi minhas falhas. 

— Sei... 

Havia me encaixado na banheira de uma forma muito confortável. Matei o resto de maria que havia na garrafa, molhei o paninho, pus em minha face e senti a água morna e o cheiro de mijo escorrendo pelo canto da boca.  

 

Não sei quanto tempo eu havia dormido, mas quando acordei a água estava fria com vômito meu. Levantei-me com asco e vomitei de novo dessa vez para fora da banheira. Reparei que não havia sido o único a ter vomitado – Velho estava na cadeira de vime com a cabeça pendida para o lado com uma golfada preta e seca do lado direito do corpo. As mãos descansavam em seu colo meio fechadas com as palmas para cima, como se ele estivesse segurando ou oferecendo algo. Chamei-o uma vez e nada. Esvaziei a banheira e enxaguei-me com um pouco de água que havia num dos galões e a banheira também. Chamei de novo: 

— Ow, maluco! Acorda, vai pro seu quarto. 

Reparei em sua coloração: roxo. Um arrepio percorreu meu corpo todo. Um desespero, um desejo de que fosse viagem minha. Corri para perto dele escorregando no vômito e batendo violentamente o cotovelo no chão. A dor foi intensa, mas superei-a agressivamente gemendo. Seus olhos estavam semiabertos. Perdi minhas forças na hora. Agora a porra havia ficado séria! Estava fora de sintonia. O prato pela metade ao seu lado, o vômito enegrecido – me dera conta na hora. Senti uma urgência, uma vontade de correr, de pegar minhas coisas. Estava aterrorizado, nunca havia estado frente a frente com um morto antes. Dessa vez a morte veio ter comigo com exclusividade. Porém, tudo o que eu fiz foi fitá-lo boquiaberto, tão gelado quanto ele estava, segurando qualquer coisa e olhando pro nada. Tentei entender a situação. 

O tempo estava do meu lado, afinal ninguém sabia que estávamos naquele prédio e ninguém chegaria lá. Acalmei-me e sentei nu em sua frente, sentindo/ignorando o tapete áspero na bunda. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito até que cheguei até ele e toquei seu rosto com curiosidade infantil e era como se tocasse um pedaço adormecido do meu próprio corpo. Era como um boneco, um objeto. Senti-me mal, era como se eu estivesse invadindo seu espaço sem seu consentimento. Ajoelhei-me e pela primeira vez senti-me sozinho no mundo. Chorei muito. Estava muito abalado, angustiado. A morte dele fez-me repensar a minha vida. Em como eu tinha chegado até ali e como minha vida havia discorrido absurdamente fora de qualquer padrão imaginável. 

Apesar de não acreditar em Deus, algo de divino nesse homem havia me tocado espiritualmente. Ele havia plantado qualquer semente em mim. Aquele fato iria mudar tudo, cara. Tudo! 

Sentia um espectro, um quase som, uma vibração, um clima. Naquele momento soube que todas essas sensações desconexas fariam sentido se eu pudesse perceber se estivesse conectado numa outra frequência. Senti que naquela hora Velho estava em outra dimensão querendo me mostrar algo. Estava no ambiente de uma forma estranha. Tudo era consciência e até as paredes estavam carregadas de energia vital. Ele estava ali ainda! Nunca havia sentido aquilo tão intensamente, era tão simples, não tinha qualquer misticismo, não haviam exageros. Sua morte havia sido um poderoso insight, um clarão, um despertar espiritual. 

O dia amanhecia e eu meditava, orava, conversava com ele, chorava, sentia cada segundo passar vividamente. Sabia que uma hora iria ter de sair dali, mas o que faria com aquele corpo? Chamaria a polícia? Claro que não! Também não sei se seria certo abandoná-lo. Tudo o que eu fosse fazer naquele momento iria modificar todo o futuro. A Teoria do Caos estava impregnada em mim.  

— Velho safado! Seu tempo está correto na sua astrologia?  

Com as lágrimas escorrendo involuntariamente, pensei no que teria que levar dali e o que teria de arrumar a fim de ocultar minha permanência naquele lugar. Sei que não dava pra esconder todos os meus vestígios, mas eu poderia tirar o que me ligaria diretamente a vida de Anatole para que a ridícula da polícia e da Justiça brasileira não me incriminasse, como sempre acontece, irônica e injustamente.  

Remexi em seus bolsos com um peso no estômago, com a sensação surreal de estar violando algo. Ele não carregava carteira. Havia algum dinheiro ali, mas nada que fosse relativo a mim. Fui até seu quarto e chequei sua mala. Algumas fotos, objetos de higiene, ferramentas... Nada meu. Fui ao meu quarto, peguei minhas coisas e resolvi ir até a casa de Stell, mas antes decidi ir vê-lo de novo.  

Cheguei perto de Velho, olhei-o com carinho, olhei a bagunça no banheiro e me levantei pesarosamente, sem querer ir embora. Antes de sair, ouvi algo como que um suspiro e vi uma moscona entrar pela janela, rodear o banheiro e pousar no rosto de Velho. 

Subi a rua com sentimento de urgência, porém sentindome fraco. A luz da sala de Stell estava acesa. Entrei pelo portãozinho do quintal e fui bater à sua porta. Ela atendeu até que rápido e estava com cara de sono.  

— Bom dia. Tudo bem? 

— Stell, o Velho morreu essa madrugada!  

BAM! No queixo! Levou a mão à boca. 

— Como aconteceu?!?!? Meu Deus! 

Convidou-me para entrar. Sentamos no sofá. 

— Cadê o corpo? Como ele está? 

— Tá no apê sentado na cadeira de vime. Eu não sei o que fazer. Peguei minhas coisas e vim pra cá... — fiz uma pausa. — Ele tá roxo, se gorfou inteiro, um vômito preto, sabe? 

— Nossa! 

— Eu não faço a mínima ideia do que vamos fazer. Tô muito abalado ainda. Imagina que eu dormi na banheira conversando com ele e quando acordo... PUM! Tá morto!  

— Mas como foi? Ele não demonstrou que tava mal?  

— Então, na noite anterior eu tava bebaço na banheira, ouvindo som, aí ele chegou. A gente ficou coversando e ele puxou uma cadeira de vime e ficou lá na frente do banheiro comendo aquele troço. Eu percebi que ele tava meio zoado, mas não pensei que fosse morrer, né! 

O silêncio havia tomado conta da sala. Sabia que ela iria chorar. Soluçou e de repente uma lágrima escorreu de seu rosto dolorido, olhando para mim. Meu coração se apertou... Cheguei mais perto e abracei aquele corpo que ficara pequeno, pequeno e pequeno. 

— Ele foi o homem mais amável que eu conheci em toda a minha vida! Nunca mais vai ter um Velho no mundo. 

Limpei o rosto dela e pus seu cabelo atrás das orelhas. Fui até a cozinha, fiz água com açúcar, o coração apertou e chorei algumas lágrimas. Trouxe-lhe o copo, bebi um gole. 

— Você era tipo um amigo especial para ele. Ainda me lembro dele dizendo que sabia que você chegaria no hospício em breve, que tinha um pressentimento forte, não sabia explicar... Estava superempolgado em te ver falando. Achava que fez parte daquilo, sabe? 

— Vocês dois fizeram parte disso. Ele plantou uma semente em mim, sabe Stell? Minha vida mudou depois da passagem desse cara.  

Ela deu um tempo e por trás dos olhos inchados surgiu a razão. 

— Cara, o que é que a gente vai fazer com o corpo? 

— Não faço a mínima — disse baixo, e de forma sincera. 

— Será que é melhor deixar lá mesmo? Até que a polícia descubra? 

— Sei lá! Onde está a família dele? — perguntei, apenas por curiosidade mesmo, não que esperasse que ela pudesse me dizer alguma coisa. Velho era muito misterioso, mas podia ser que tivesse revelado algo mais para Stell. 

— Nem ele sabia. Eles são ciganos, gente sem paradeiro. Sei lá como é esse povo. 

— Mas e aí, o que você acha que ele gostaria que fizéssemos? 

Encolheu os ombros. 

— Cara, eu acho que é muito arriscado fazer qualquer coisa com o corpo. O Estado toma alguma atitude.  

Pôs o copo no chão e continuou. 

— Eu tô sossegada quanto a isso. Nós o prestigiamos quando vivo, os outros que façam o que quiserem com ele depois de morto.  

— Ele vai ser enterrado como indigente... — É só mais uma ossada dentre trilhões sob a superfície desse planetinha. 

Verdade, o que adiantava? Éramos apenas ondas no mesmo mar. Aquela onda havia se dispersado, mas a água retornava para o oceano junto com o enorme refluxo. 

 

Naquela manhã havíamos ficado juntos na casa da Stell. Dia estranho. Eu não sabia o que fazer da vida. Voltaria à casa dos meus pais? Arrumaria trampo engravatado e alugaria um muquifo? Viveria nessa cidade cinza, fria, — este inferno gradeado angular de noventa graus! — numa vida careta? Eu não tinha experiência com nada, não tinha formação, não tinha tesão. Talvez mudasse de cidade, iria para o campo ou para a praia. Talvez me enclausurasse do mundo em um mosteiro, ou trabalhando em algum retiro Vipassana e iria em busca do sentido espiritual da vida. Estava perdido, triste e sentindo abstibência. Além de tudo estava carente e Stell estava ali... 

Ela era uma mulher ocupada, responsável, dava aula e ainda se dedicava à pesquisa de células-tronco. Chegava em casa e se trancava em seu ateliê para pintar suas rosas à noite, mas resolvera dar um tempo. Tirou uns dias e ficamos juntos fazendo nada mais do que conjecturar sobre a vida o dia inteiro no salão sob a pia. Havia ali uns almofadões. O canário cantava gostoso o dia inteiro, quando Stell punha a gaiola no jardim.  

Eu a ouvia com interesse de criança e ela despertava minha imaginação com suas histórias fantásticas. Havia estudado de tudo, havia viajado, casara-se uma vez e depois que o cara se foi, ela não havia perdido as esperanças e continuou com o coração aberto.  

No dia em que ficamos pela primeira vez o sol semivertical das 10 horas da manhã fazia do vitral no teto uma aquarela agradável e meus olhos deslizavam pelos contornos dos corpos nus graciosamente defletidos na parede. Sentia meu corpo afundado moldar aqueles almofadões de algodão sintético. A zoada dos carros na rua era levemente hipnótica sob o improviso dos canários fazendo um jazz vigoroso a saudar o dia. Ainda sentíamos o efeito do café da manhã agir sobre a pureza que a noite deixa na gente. Aquilo era o estado perfeito para mim, o estar vivendo plenamente o momento. Não haviam forças contrárias aos nossos atos. O coração batia com vontade de bater, os pulmões balanceavam tão harmoniosamente o mundo exterior com o interior que eu me sentia uno com aquele instante. Éramos Stell, eu e o continuum espaço/tempo. 

Ela estava ao meu lado, eu sentia sua coxa morena quente na minha perna e sua barriga firme em meu joelho. Eu acariciava seus cabelos ondulados e macios, massageando seu couro cabeludo, exalando um cheiro floral. Ela contava sobre sua infância.  

Eu olhava o vitral no teto, ouvia sua voz, o canário e, quando no impulso do abraço, eu já estava apaixonado. Seu hálito doce e seu cheiro familiar eram só a confirmação desse fato. Beijamo-nos por muito tempo, descobrindo nossos corpos com a empolgação de adolescentes, apertando-nos com força, suspirando e acariciando de olhos fechados. Eu estava completamente maluco por aquela mulher!  

 

Não sei quanto tempo passamos nus naquele salão. Comíamos, bebíamos, líamos poesia, interpretávamos os livros dela, fazíamos um ao outro de modelo vivo e nos pintávamos em óleo, aquarela, filosofávamos, improvisávamos. Enquanto ela tocava teclado eu tocava tambores, violão, depois revezávamos e transávamos. Mal podíamos nos encostar que saía faísca entre nós. Eu havia descoberto uma joia ali e ela correspondia.  

Nossa trilha sonora era música clássica e a eletrônica tipo chill-out. Ela havia me mostrado Helios e eu havia lhe mostrado Digitalism. Ela introduziu-me ao Joy Division e eu ao Yes. Ela deu-me Florbela Espanca e eu dei-lhe Vinícius (e juramos nunca recitar o Soneto de Separação em voz alta). Assistimos juntos Satyricon, Sonhos do Kurosawa, Waking Life, Bar Esperança, A Viagem de Chihiro, O Pequeno Príncipe, Chaplin...  

Ansiamos viver desesperadamente cada momento, tentando torná-los inesquecíveis em nossas telas, nas paredes do salão, nos filmes e fotos. Em uma semana já nos amávamos muito! E lembrávamos já com certa nostalgia e espanto cada segundo que estávamos vivendo desde que nos conhecemos, exaltando a magia de nosso encontro no meio desse mundo imenso.  

Anatole era presença constante em todos os nossos momentos. Celebrávamos seu nome. Chorávamos de vez em quando. Tudo estava sendo muito intenso. Os problemas estavam do lado de fora. Não havia mais um mundo girando. 

Aquela era nossa caixinha de fósforos multicor. Acendíamos um quando fazíamos amor e quando apagava ainda podíamos nos sentir mornos por um tempo. Eu amava cada primeira e última substância daquele corpo. Sentia-me lambendo sua pele de céu.  

Fazíamos planos utópicos. Iríamos para o meio do mato ou para uma praia. Montaríamos um restaurante de comida vegetariana e viveríamos de pintura e horta orgânica. Escreveríamos. Ou viajaríamos o mundo. No fim das contas eu não podia ir à farmácia que sentia falta da Stell. Estávamos até o pescoço, atolados nessa paixão. Tínhamos as mesmas ideias em relação ao mundo, à sociedade, éramos feitos da mesma substância. Eu havia contado minha história e meus segredos a ela. Ela me contou os dela e era tudo lindo.  

Nem sabíamos o que tinha acontecido com o corpo do Velho, até que um dia a Stell gritou para mim do banheiro. 

— Acharam o Velho! 

Eu corri até segundo andar e encostei na porta.  

— Como assim? 

Ouvi a descarga e ela saiu com o laptop na mão.  

— Se liga! — Ela começou a ler a notícia. — Homem morre envenenado e seu corpo é encontrado putrefato em prédio abandonado pela Prefeitura no Bixiga. 

— Mano do céu!!!  

— ... O corpo foi descoberto depois de detectada uma alta concentração de urubus entrando e saindo do prédio... Se liga, se liga, ó! ...ao adentrar o local a polícia descobriu que a pessoa em questão morava ali por pelo menos três meses em uma completa estrutura de subsistência...  

Rimos! Na foto via-se o quarto do alambique com as privadas. 

— ...A identidade do homem ainda não foi identificada... Nossa, não fala nada sobre outro alguém morando lá.  

— Claro que não! Imagina que a polícia vai querer mais trabalho? — eu disse. 

E ela finalizou. 

— A Subprefeitura da Sé declarou em nota oficial que as devidas providências já estão sendo tomadas para que se dê uma finalidade ao antigo Edifício Garcia. 

 

Um dia estávamos no jardim podando seu oleandro e começamos a conversar sobre o Velho e lembramos sobre aquela festa. Eu estava curioso sobre o teor daquilo tudo, tipo o verdadeiro motivo do evento. Ela me disse que se tratava de um grupo fundado por ela, chamado Evolução Dhaen. Que tudo aconteceu quando descobriu o potenciador radiônico quântico que, como ela havia explicado naquela noite, era um tipo de conector com algum universo paralelo a esse, pelo que entendi. Como isso funcionava era um tanto complexo e era preciso um pouco de conhecimento prévio para poder entender.  

Ela me explicou que, ao longo de milênios, têm-se estudado a energia vital e, portanto, vários nomes foram atribuídos a ela. Os antigos alquimistas chineses a chamavam de chi, os médicos do Ayurveda (a milenar medicina indiana) de prana e os antigos gregos a chamavam de éter. Na Bíblia este conceito emerge como a ideia do espírito santo, Willhelm Reich, a partir de seus estudos, batizou-a de orgônio e em Biologia este é o conceito de bioplasma.  

Muitos foram os cientistas, artistas, médicos, filósofos e místicos que abordaram o assunto, mas foi com Clive Backster que ele tornou-se mais interessante. Este especialista no manuseio do detector de mentiras – o galvanômetro – descortinou um mundo novo de possibilidades ao aplicar testes em plantas e descobrir que estas eram capazes de sentir, comunicar-se, ler pensamentos e possuíam até memória. E todas essas características são atribuídas à energia vital. 

Os que mais contribuíram para estudos de Stell na área biológica foram Goethe, que em sua Teoria da Metamorfose das Plantas desenvolve a hipótese de que todos os seres vivos possuem um registro energético de si, cujo nome cunhado por ele é corpo astral. E Wilhelm Reich, que entre outras muitas e ricas contribuições, observou os tais biônios, como Stell tinha me dito. Os biônios são vesículas imateriais, mas que carregam e podem retransmitir energia biológica.  

Na área da Física, Stell teve seus primeiros insights com o trabalho de Fritjof Capra e Amit Goswami, que foram os pioneiros da Nova Ciência. O primeiro foi responsável por trazer à luz analogias bizarras entre a natureza da matéria e as religiões milenares do Oriente. O segundo estabeleceu definitivamente a ligação entre a Ciência e a Religião. Mas a pedra angular do desenvolvimento do mais ambicioso projeto de Stell foi uma descoberta bizarra, porém cheia de significado embutido feita por Niehls Bohr, um físico dinamarquês do século XX.  

O que este cara descobriu foi que o corriqueiro salto executado pelos elétrons entre as camadas eletrônicas que envolvem o núcleo do átomo eram fenômenos incrivelmente bizarros e que tinham tudo a dizer sobre a realidade em que vivemos. Essas subpartículas, quando migram de uma camada eletrônica para uma diferente, simplesmente desaparecem da primeira e reaparecem na outra! Pressupõe-se que percorrem um trajeto não-local. Essa descoberta é a explicação para o entrelaçamento e comunicação quântica. Sabe-se que subpartículas que tenham sido submetidas a outras por tempo indeterminado mantém uma relação duradoura e de tempo indeterminado. Tipo assim, se eu manter duas subpartículas em contato e depois separá-las, enviando-as a qualquer distância, as duas apresentaram o mesmo comportamento e com simultaneidade. Elas estabelecem uma relação não-local. Esta relação é bizarra porque não se utiliza de meios locais para se estabelecer. O melhor exemplo para esclarecer a relação local é o som. Um alto-falante estabelece uma relação com seus ouvidos a partir da vibração do ar, que é um meio local... 

A genialidade de Stell foi a de descobrir a relação entre as duas teorias. Ela foi inegavelmente uma felizarda no aspecto científico ao descobrir a natureza quântica da energia vital e desenvolver o potenciador biônico por intermédio do processamento genético-quântico (de uso restrito nesta época); que é responsável por codificar, armazenar e replicar a constituição astral de qualquer ser-vivo e retransmiti-los a outro lugar, a qualquer distância, qualquer tempo, em qualquer universo pela câmara de imersão astral, e junto a sua consciência.  

Essas descobertas levaram algum tempo depois, à prova científica da existência de universos paralelos de nível 4, numerosos e externos a este em que vivemos. Stell participara pessoalmente dos experimentos e testes no Grande Colisor de Hádrons em Genebra. 

Mas ela não tinha levado isso adiante pelo menos de forma oficial, pois de outra maneira o Estado e os milionários que comandam o sistema bancário e capitalista mundial iriam fazer o que fizeram com um monte de outros cientistas, como foi o caso de Tesla e Reich. Além disso, ela seria ridicularizada pela comunidade científica e seu trabalho seria enterrado de vez, uma vez que o modo de se fazer ciência em nosso mundo atual tornou-se um ofício burocrático e oportunista (isso é o que vêm matando a ciência séria). Por outro lado, muitos avanços têm-se feito por intermédio dos métodos da Ciência Oculta. Portanto ela se responsabilizou por convocar um grupo de místicos sérios, cientistas, poetas e artistas, amigos dela e sondar até onde poderiam chegar com aquilo. Aí o que ela fazia em seu dia a dia era perfumaria, pura cama, mesa & banho com célulastronco!!!!! Além de tudo isso ela tinha a plena consciência de que esses acontecimentos em sua vida eram nada mais, nada menos do que frutos de sua posição cármica no Universo. Ela era apenas um pivô daquilo tudo e sabia que se não fosse ela, seria outro alguém com as mesmas inclinações probabilísticas a fazer estas descobertas. Não precisava de louros, dinheiro ou fama.  

Até então eu achava que aquilo tudo era apenas ramificação religiosa como todas as outras. Para mim não fugia do normal, como Umbanda, Santo Daime, os derviches africanos, quackers... Mas não! Aquilo ia além, era algo cientificamente plausível (quem era eu para falar, né!). Sei é que eu estava começando a ficar realmente interessado por aquele misticismo científico. Não fazia a menor ideia de como tudo funcionava, às vezes não era bem assim como a história estava sendo pintada na minha cabeça. Na teoria era bonito pra caralho. 

Perguntei sobre aquelas pessoas fazendo todo aquele teatro e ela me falou que depois que viajam, eles ficam um tempo em transe, como que movidas pela energia cósmica e que eram mantidas ali voluntariamente por um tempo para que fossem estudadas. Acreditamos que aquele estado é um tipo de estado especial, afinal, tudo o que constitui seus corpos está entrelaçado quanticamente a outros universos ainda, explicou. 

Todos os que estavam ali se dividiam entre neófitos Dhaen (os místicos e/ou cientistas que literalmente viajam para os outros universos), apoiadores (místicos que dão apoio sem estarem diretamente experimentando outros mundos). –Estes últimos geralmente tiveram experiências anteriores ou são macrossoma, isto é, possuem constituição morfogenética grande e forte – analistas e coletores de dados, que estão ligados intimamente a pesquisa e os investidores e contatos ligados ao projeto. Estes são os que na maioria das vezes estão por ali curtindo ou bebendo. Geralmente fazem balcão de negócios nessas ocasiões.  

É claro que ela não tinha aberto todo o projeto, eu sabia. O lance, pelo jeito era importante. Haviam pessoas trabalhando nisso, empresas envolvidas, coisa grande e quente. Fiquei com um frio no estômago de saber que se tratava de uma irmandade importante tipo tecnorreligiosa, trampando em coisa séria. 

Disse-me que o Anatole queria introduzir-me no grupo desde que tinha sentido a minha chegada ao hospício (parece piada quando me lembro dele dizendo que o cheiro mudou. Toda vez que lembro tenho vontade de rir). Disse a ela que eu tinha potencial místico e constituição akáshika curiosa. Ela sentiu isso também quando me conheceu. Até eu senti, afinal eu estava sentindo qualquer coisa para experimentar aquele lance! 

Perguntou-me se eu queria tentar a experiência e eu assenti na hora. 

— Demorou, vamos que vamos!  

Naquela noite, eu seria iniciado como neófito na Evolução Dhaen. Rápido assim. 

Muito fizemos naquela tarde. Além de podarmos as plantinhas do jardim da frente, podamos as do jardim de trás da casa também (após uma longa sessão de sexo). Limpamos as casinhas de passarinhos feitas de fibra de carbono, cujo design era todo arrojado, com linhas que mais pareciam as da Casa da Caverna em Santorini. Chique. Depois fomos limpar o reptário e alimentar os répteis da Stell. Ela me explicara o porquê daquele terrário estar ali. Disse-me que ali seu pai teve o primeiro delirium tremens e foi tão impactante para ela na época que jurou que aquele lugar seria maldito, a não ser que algo pudesse viver ali se alimentando da energia ruim para contrabalancear a dinâmica de lá. 

Para que ninguém se aproximasse mais dali (a não ser ela) e para que o ambiente pudesse ser exorcizado, ela meio que marcou a cena isolando o local e pondo seus répteis ali para viver. Claro que ela fez umas reforminhas para adaptar o lugar: pôs o laguinho, um respiradouro, sistema de aquecimento e iluminação adequados, embutiu alguns vasos nas paredes e pôs um pergolado do lado oposto à escada; porém, o essencial da cena estava lá. 

 

Depois de um banho de uma hora, ouvindo som e bebendo vinho na banheira da suíte da Stell, resolvemos ir jantar (até meus ossos estavam enrugados).  

Stell era vegetariana, apesar de às vezes comer algum tipo de carne quando tinha certeza de que nenhum animal havia sofrido, nem tivesse sido abusado ou maltratado durante a vida.  

— Então, não quero te obrigar a nada, mas hoje você vai ser admitido à Irmandade. Eu tenho algumas considerações a fazer antes de você ser iniciado, só como sugestão e, é claro, para que melhor possamos estudar o seu desenvolvimento dentro da câmara de imersão astral.  

— Afe, só nome louco. 

— Convenção, meu querido! Convenção apenas. O essencial está muito aquém das convenções. 

Dei uma risadinha. Ela continuou séria. Senti-me meio bobo. 

— É preferível que você não coma carne de nenhuma espécie pelo menos antes de ir à sessão. Dessa parte eu já tô cuidando — sorriu. 

Ela me serviu um escondidinho de shitaki com cobertura de queijo gorgonzola enquanto eu salivava litros. 

— Ué, tudo bem, mas por quê? 

Ela se sentou de novo. Seu rosto estava iluminado pela luz do lustre e pelos spots que saíam do chão, conferindo um ambiente quente e confortável à sua sala de jantar. A prataria muito bem polida, e a louça também, tinha um papel importante nesse efeito.  

Chupando um pouco de creme de mandioca com requeijão que havia ficado na ponta delicada de seu indicador de unha curta, aparada, sóbria, ela continuou com seu tom corriqueiro. 

— Olha, a gente não come só as substâncias da comida, seus nutrientes não são apenas as moléculas, sabia? 

Fiz que não, inocente. 

— Ingerimos a energia vital desses alimentos. Pensa comigo, a gente emite uma quantidade de energia vital de 6500 angstroms, que é uma unidade de medida para escalas atômicas. A maioria dos legumes e verduras recolhidos na hora emite de 8000 a 10000. A única carne que emite a mesma quantidade de energia vital para nós é a do porco, logo depois de abatido, salgada e posta no fogo de lenha. Mesmo assim... O resto das carnes, em termos energéticos, só servem para cansar o corpo no trabalho da digestão. Mas o pior não é isso, é que a gente acaba ingerindo a energia vital ruim deles, que se chama DOR ou Deadly Orgone e isso faz mal pra gente. Essa energia é a energia decorrente do sofrimento desses animais acumulada durante anos, além da quantidade de substâncias enfraquecedoras que ingeriram para crescerem, para ficarem imunes, etc. 

— Ok, mas e isso com a imersão? 

— Isso quer dizer que o que você ingere harmoniza-se a vibração do seu corpo e se essa vibração for mais baixa, isso pode afetar a sua constituição astral. Precisamos de você íntegro, apesar de que isto é meio utópico, uma vez que você tá em franca e constante mutação todo o tempo. 

— Então, mas e as plantas não sofrem? 

— Sim, como eu te falei as plantas possuem um sistema nervoso insipiente, mas têm. Elas sofrem, têm memória, mas foi detectado que, miraculosamente, elas gostam de fazer parte de algo maior do que elas, por isso, quando a gente prepara uma planta para comer, isso dispara nelas um processo de entorpecimento, tipo narcolepsia. Pense bem, é por isso que vários religiosos da maioria das religiões rezam e agradecem antes de comer...  

Ela não comia enquanto falava, permanecia linda com suas mãos abaixo do queixo. 

— Tem um livro ali que se chama A Vida Secreta das Plantas, depois eu te mostro. É minha bíblia verde. 

— Esse tipo de coisa ninguém ensina na escola. Isso é o que me revolta, sabe?  

— Baby, quanto mais você se revolta, mais isso fica impregnado no seu campo astral, sabia? Sabe qual é o outro nome dessa famigerada energia que constitui seu campo astral? 

— Não. 

— Energia do amor... 

Ela adorava quebrar minhas pernas. Sacana! 

— Então, mas uma vez você disse que as pessoas demoravam para entrar em sessão na câmara. Por quê? 

— A primeira vez que fizemos a experiência, tivemos que fazer a manutenção dessa pessoa por seis meses, o tempo que ficou imersa, e não havíamos considerado a questão da relação temporal. Não sabíamos muitas coisas na época. Seis meses foi pouco tempo para ele. Ele havia apenas encostado em um dos planos de controle Dhaen. Você vai entender o que é isso depois. Mas aí aprendemos a coordenar o tempo. — Stell tirou algo do dente e continuou. — Vou te deixar primeiro sentir, ter sua vivência, depois, quando você possuir algo tangível, te explico. Fica mais fácil. 

— Manutenção do quê? 

— Do corpo. 

— Mas como, ele fica adormecido? 

— Digamos que em latência. A gente vai te puxar do lamaçal da morte depois. 

A comida travou. Senti meus olhos saltando das órbitas e quando eu estava quase sem conseguir respirar, ela soltou uma sonora gargalhada. Aliviei um pouco e perguntei: 

— Brincadeira, né? 

— Não! 

Filha da puta!!! 

— Como assim? 

— Tá, não é bem assim... Eu não perderia a oportunidade de ver essa cara por nada! — Stell riu um pouco mais com aquela brincadeira idiota e depois se conteve e concluiu. — Quer dizer, é mais ou menos assim, mas tá tudo sob controle, você vai ver. Você vai passar por um tipo de EQM. 

— E-QUE-MERDA é essa?!?! 

— Experiência de Quase Morte. Nunca ouviu aqueles relatos de gente que foi pro outro lado e voltou? Então, é isso.  

Concepções sobre a morte, minha história pessoal e a quase nula expectativa para o futuro bailavam em minha cabeça indefesa. Quem eu queria enganar com aquela baboseira exagerada toda? Nem a Stell, acho. Se não me submetesse àquele literal sacrifício de meu corpo a qual Stell se referia, anos depois, minha história com certeza iria se enveredar até becos sem-saída existenciais. Delírios de universos paralelos me atormentavam, eu me via trancafiado em um escritório poeirento, fingindo não sentir as baratas caminhando por sobre minhas roupas num calor desgraçado, simplesmente por estar cansado de lutar contra a ideia de que aquele lugar é mais delas do que meu, ou trabalhando em péssimas condições em buracos fedidos na construção civil, sabendo que uma hora ou outra quebraria o pescoço caindo de algum andaime ou teria algum membro esmagado por uma parede que poderia desmoronar sobre ele. Eu certamente me arrependeria quando, em um bar de algum bairro pobre, afastado, esquecido pela família, bêbado de cachaça batizada, visitando o banheiro para cheirar o último papel da noite (alimentando a última chama da ilusão de espírito que poderia habitar minha carcaça cansada) eu com certeza me lembraria daquela janta, daquela mesa e daquela copa iluminada pela luz incandescente da cozinha, daquela mulher e do fato de que não enfrentara a morte ou a loucura ou qualquer outra merda que pudesse fazer toda essa piada da minha existência valer a pena. Que pudesse mudar tudo! Que perdera a única chance de virar o jogo, de dar sentido à minha vida. E que essa outra história perdida em meio aos inúmeros universos paralelos se tornaria um pesadelo infecto e tangível dali para adiante, um arrependimento a me ancorar no solo sufocante da morte e da estagnação pelo resto da minha miserável existência.  

Ela comia lentamente enquanto eu estava na segunda cumbuca. Apesar do creme de mandioca com requeijão ser meio pesado, o que eu comia estava estupendo! 

— Cacete! Agora sim eu tô me sentindo um neófito de verdade. Será que eu chego ao seu nível um dia? 

— Todo mundo tem seu tempo, Nizhus. Quero dizer... 

Naquela hora eu havia parado de comer e havia posto o garfo no canto do prato, decidido a obter uma resposta. 

— Na boa, por favor, explica o porquê de Nizhus. 

A menina havia corado naquela hora. Olhava para o prato. Aí começou a catar um pedacinho de chitaki com o garfo. Cessou o falatório, mas procurava uma resposta para consertar o vacilo. 

— Cara... — pausa. 

— Ãhm. Cara soy jo. Pode falar. 

Ela sorriu. Fez um charme. Eu disse em tom de zoeira: 

— Pode parar de fazer charme e me explicar logo esse negócio! 

— Eu sei, você vai saber. Daqui a pouco. Te prometo. 

Todas essas dúvidas vão ser solucionadas. Sério! 

Sério... 

          Depois que lavei a louça fomos para o sofá descansar um pouco. Deveria ser umas nove horas da noite. Estávamos abraçados no sofá folheando A Vida Secreta das Plantas da Stell, edição inglesa. O problema é que a edição era toda em inglês – é claro! – e o meu estava meio atrasado. Então ela me explicava algumas coisas, com o cuidado de traduzir ao pé da letra.  

Foi o tempo de fazermos a digestão decentemente quando ela me largou lá dizendo que já voltava. Desceu para o salão. Demorou tanto que eu adormeci no sofá. 

Quando acordou-me com beijos, dizendo-me para não me atrasar para o cerimonial, eu não sabia dizer quanto tempo se passara, antes de ela desaparecer pela porta.  

— Cerimonial?!?! 

— Zueira — riu. 

Desci. Ao me ver, apontou-me uma roupa branca num cabide pendurado na máquina.  

— Veste aquilo lá. 

— Uniforme? 

— Sim — riu — é material orgânico e inorgânico em fases. Requerimento básico para o ofício. Ele ajuda a armazenar, absorver e conter orgônio. 

— Ui, quando a pessoa fala em termos técnicos é que o relacionamento ficou lá encima pra bem depois. 

— Isso mesmo. Agora sou dra. Stell Faukner.  

Vesti-me.  

— Vem comigo. 

Fomos até a parte de trás do caldeirão com as câmaras e ali ao lado percebi algo novo: onde era só parede havia um vidro enorme escamoteável que dava para uma sala de controle.  

— Ah, malandra! 

O líquido biônico dentro caldeirão borbulhava e ouvia-se uns tilintares metálicos no vidro grosso. Era rosa e levemente brilhante, possuía uma cintilação verde conferindo-lhe um aspecto muito artificial, como bolha de sabão. 

Enquanto Stell estava trepada numa escada entre duas câmaras a uns dois metros do chão mexendo em válvulas, checando mostradores digitais, fazendo anotações em uma prancheta pendurada em seu pescoço, falava: 

— Seguinte: você vai entrar naquela câmara ali e pelos próximos vinte minutos vou pedir para você se concentrar apenas na sua respiração. Vou pôr um som meio estranho, isso vai ajudar no processo. Mas não agora! Antes disso você vai tomar um negocinho aqui. Só um minuto. 

— Sim senhora! 

Ela usava um jaleco sobre uma blusa de manga roxa e um shorts verde-claro, usava também uma papete preta. Seu cabelo encaracolado estava preso em coque no topo da cabeça, com um lápis enfiado no meio.  

O celular tocou, ela atendeu, pôs os fones de ouvido e continuou fazendo o que estava fazendo.  

— Oi! — efusiva. — Como é que você está? Resolveu ligar, né! Quanto tempo! 

Eu fiquei um pouco preocupado com tudo aquilo. Como pude perceber aquilo não era brincadeirinha. Devia ter uma grana monstruosa naquele equipamento. Eu não fazia nem ideia do quanto. Olhei para cima e os nus realmente pareciam estar em uma postura ameaçadora. Qual era a intenção da Stell em pôr aquele negócio ali? Aliás, andando pelo jardim da parte de trás da casa, eu não havia reparado naquele vitral... Iria perguntar para a Stell assim que ela dispensasse aquela pessoa. Aliás, que demora! 

... que gracinha aquele menino! Se eu me lembro? Claro, eu tava lá, né! Você não lembra? Devia estar chapadona, né... 

Dei uma sapeada dentro da sala de controle da Stell: dois computadores mais um monte de geringonças, telinhas, telonas, monitores disso, saídas daquilo, COISAS CUJAS QUAIS eu nunca IRIA entender as funções. Ela gritou lá de fora. Fui ver o que ela queria.  

— Pega aquele multímetro que está na segunda prateleira pra mim? Tem uns três, pega o vermelho, por favor. 

Peguei o infeliz. Os outros estavam em cima de um papel, destinados a calibragem. Entreguei-a e ela deu uma risadona que me assustou. Pensei comigo que minha vida e minha consciência, minha sanidade, – sei lá! – estavam nas mãos dessa mina, ela estava ocupadíssima com o maquinário, mas parecia não estar nem aí. Eu estava tenso, torcendo para ela desligar logo e se concentrar.  

Lembrei-me de ir ao banheiro descarregar. Nem pensar em ficar semi-morto por tempo indeterminado com urina na bexiga! 

Quando voltei, ela ainda falava e mexia nos equipamentos trepada na escada. Pensei que além de tudo ela podia despencar dali.  

Cacilda, desliga logo, porra! 

Esperei olhando para a cara dela, menos tenso, mas agora tentando entender o que se passava. Ela nem tchum. De repente ouço um ai, que bom! Vem mesmo. A gente faz um jantarzão!... Traz a Mônica... Isso! Então tá... — Então tá! — Nãããããão! Você não sabe o que aconteceu.... Puta que pariu, aquele papo era interminável! 

Subi de novo, fui lá fora procurar o lado de fora do tal vitral, que pelos meus cálculos, imaginando a planta da casa, deveria emergir de alguma forma como um tipo de domo no meio do jardim. Era impossível aquele desenho arquitetônico! Eu refazia o caminho na minha cabeça e o vitral teria de aparecer na parte de cima, mas absurdamente não estava disposto em virtualmente nenhuma parte da construção! Nada! Que arquiteto marrento este! Eu deveria estar errando em algum lugar. Depois perguntaria à Stell. 

Lembrei-me do Piu, o passarinho da Stell, que deveria ter a água e o jornal do chão da gaiola trocados e encarregueime da função.  

Enquanto eu enganchava o almeirão na grade, Stell apareceu debaixo da pia.  

— E aí, desistiu? 

Desistiu!!! Humpf! 

— Não, só vim cuidar do Piu enquanto você terminava sua retrospectiva 2009 com a pessoa do celular. 

— Era uma amiga que faz tempo que não nos falávamos. Deixa de ser chato! 

Descemos e havia um becker na mesa com mais ou menos 500 mililitros do poteciador borbulhando sozinho. Agora não tinha mais volta. Bebi o troço meio que tentando imaginar o porquê de eu ser o único a não ter uma vida normal como todo mundo. Por que eu tinha que me meter a besta sempre?  

Bebi de um só gole. Geladinho, podia sentir grânulos azedos tilintando de leve no topo do crânio.  

— Beleza, agora deita lá. 

Estava indo quando ela puxou minha mão. 

— Mas me dá um beijo antes. Não sei quando vou te ver de novo. Vou ficar com saudades — disse, manhosa. 

Beijamos gostoso. Encoxei-a. Transamos. 

 

Deitei numa espécie de bandeja com a alma leve, meio suado e aos poucos fui sendo automaticamente levado para dentro da câmara. Fechei os olhos. 

Alguns segundos e um chiado. De repente a voz dela num alto-falante.  

— Oi, delícia! Eu tô peladinha... 

— Peraí que eu tô indo aí! 

— Não, não, não! É brincadeira. Tá bom, vou parar. É sério. Fica quieto aí! — fez uma pausa para depois retomar o tom hipnótico. — Agora vou pôr um som bem relaxante pra você. Quero que você relaxe o máximo que conseguir. Vou estar por aqui te acompanhando. Se se sentir estranho, mal, qualquer coisa me avisa, tá? Se você sentir problemas em falar é só apertar o botão vermelho que está ao alcance da sua mão. 

— Ok. 

Abri os olhos para ter certeza de onde estava o botão e reparei no interior da câmara, toda almofadada, com estofado de courino branco. Fresca por dentro. Realmente bem confortável, só que era estreita. Havia uma janela redondinha onde eu podia ver uma parte do caldeirão borbulhando, um monte de fios — e os filhos da puta dos nus olhando para mim com aquela cara! Desencanei deles e perguntei a ela se ela já havia passado por esta experiência.  

— Não, amor, a minha sessão estava agendada pra essa semana, mas como você está passando por ela hoje, vou ter que esperar. 

Nossa, quanta importância não! Sentia-me constrangido com isso, mas provavelmente havia mais do que apenas gentilezas nesse cancelamento. Era certeza que as previsões do Velho tinham alguma coisa a ver com a decisão dela de me enfiar nesse troço antes dela. 

— Quero que sinta seus pés, preste atenção neles. Sintaos aquecidos... 

As luzes se apagaram e uma massa vermelha começou a girar acima dos meus olhos. Iniciou-se em fade-in um som contínuo e hipnótico, diferente para cada ouvido, fazendo-me ficar confuso, porém em um certo transe. 

— Sinta o calor subir até seus joelhos...  

Ouvia o tal do som e sentia muito amor puro. Não por algo ou alguém, mas o simples sentimento de gratuidade, generosidade. Que droga era aquela? 

— Sinta suas coxas, seu lombar. Que relaxamento! Você nem consegue se mexer agora... 

Um bálsamo preencheu o ar, tudo cintilava, sentia uma água morna e ao mesmo tempo fresca passando sob meu corpo. 

— Inspire o ar azul...  

Meu corpo era um conector por onde todas as energias do universo passavam. 

— Sinta a luz penetrar todos cantos do seu corpo... 

O fator corpo agora estava quase que completamente neutralizado.  

— Vou contar de dez a zero. Quando chegar a zero você vai se desprender. Dez... nove... oito... 

Sentia a completude.  

— ... sete... seis... cinco.... 

Todo o espaço fora da câmara. 

— ... três... dois... um. Vai! 

Meus olhos se abriram!  

 

 

 

 

 

 

 

Segunda parte  NIZHUS 

 

 

 

 

 

 

 

 

               

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

As ranhuras se moviam nas entranhas daquele plano holográfico de hastes verticais, fundindo-se ao horizonte estreito. Pareciam sintoma de tontura ou pressão no canto do olho: eram apenas gotas vivas do corpo de Hermeia e só eram por si porque eram a diferença entre tensão e distensão, espasmos da entidade — a consciência da gravidade entre os universos. O lugar era silencioso, mas vibrava cálido como um ronronar por causa da alta concentração de energia astral daquele plano em específico. O chão era como uma ausência tangível, um líquido etéreo que causava vertigem, e caminhar era apenas mais uma opção na queda eterna. 

Do atemporal fez-se um fato e daquela familiaridade absurda que ele possuía com sua própria constituição (aquelas cerdas grossas no lugar de boca, corpo pálido e esquelético, cujas articulações giravam 360 graus em torno de si; a pele endurecida, quase chegando ao nível do exoesqueleto, a cabeça extremamente pequena e rugosa, globos oculares cabeludos e pegajosos, o ritmo convulsionante e imprevisível) passou a se perceber com diminuto e pálido horror.  

Nizhus interagia física e intensamente com aquele lugar, era o elo entre as dimensões, entre o micro e o macro, não era matéria (e tudo possuía personalidade), era uma representação animada, cuja constituição apresentava uma semi-solidez, quase sem consistência, como se ele e o lugar fossem feitos unicamente de energia, mas aquém disso, eram informações vivas. Viviam naquela silenciosa floresta intuitivamente, sem conflito, mediando as ocorrências entre dois dos vários Universos. Aquele plano era uma representação holográfica.  

Algo fora abalado na harmonia astral do plano de controle – Nizhus começava seu processo de decaimento: estava sintonizando outra qualidade de consciência, na anti-matéria, do anti-reino, na dimensão 11. Algo começava a solidificar-se.  

Nizhus deslocou-se de sua câmara correspondente ao Messier 4, de onde observava o tempo da Terra jorrando e onde este nunca passava, para o lago abissal de águas semi-etéreas de Réquio, o gigante lagarto proteu. Ao adentrar o lago, Nizhus foi envolto pelo plasma morno e translúcido. Flutuava sobre o abismo. Pôde sentir a resposta imediata da entidade e sua sombra vinha como que há quilômetros de distância lentamente, sua forma era uma pequena mancha rosa de tonalidade pastel, como carne fresca, longínqua. Nizhus afundava, afundava, seus membros começavam a ficar cada vez mais entorpecidos (sinal claro do decaimento). Então fez-se uma sombra sobre ele, próxima dele e ao seu lado, demoradamente Requio surgia, até que postou-se imenso e flutuante diante do neófito Dhaen. Sua imagem era quase maliciosa, tinha algo de escarnecedora, um meio-sorriso fossilizado em seu rosto sustentava seus olhos negros de quase meio metro cada. 

— Sua identidade anacrônica lhe será subtraída — sua voz era atordoante. 

Nesse momento o corpo de Requio começou a abranger o da pequena entidade e a absorvê-la num processo demorado e doloroso. A dor era proveniente da adição de matéria grosseira. Seu corpo convulsionava, ele vomitava, alucinava até que outras proporções foram sentidas, dimensões a mais confundindo sua consciência não-adaptada.  

Vertigem.  

Um mar sem horizonte se desdobrou abaixo dele – que de repente elevara-se surpreendente às alturas – e Nizhus viu outro gigante, movimentando-se a uma velocidade alucinante. Tinha tentáculos saindo de sua cabeça e no meio deles havia um olho. O corpo colossal tentava agarrá-lo na queda. Cristais imensos e pontiagudos surgiram e despareceram das vagas marítimas e eram esmigalhados pelas pernas esverdeadas de Ctulhu. Essa dimensão era a dos antigos mestres que foram exilados antes da criação do Universo conhecido e que um dia retornariam para reclamar o seu lugar.  

Em um estalo, o corpo de Nizhus chocou-se contra as águas daquele denso mar e afundou rapidamente até acomodarse bem no fundo. Ouvia-se os passos furiosos do colosso enraivecido ao longe. Nizhus foi empurrado por uma correnteza até o fundo de uma caverna labiríntica. Depois de algum tempo sendo empurrado por entre o breu, ele emergiu para as pedras secas. Estava tonto (sensação relembrada?). Ouvia um coração. Com ele também murmúrios (Era o ventre ali?). 

Ficou muito tempo (dias? Anos?) em estado de letargia agônica, como em terçã. Então, em um acesso repentino e desesperado, levantou-se e, ainda vomitando algo acre, ergueu as mãos e sentiu uma parede que parecia indicar um caminho por entre pedras quentes. Viu um ponto de luz azul quente ao longe, quase roxa. A pedra começava a ficar menos áspera e dura para tomar um aspecto vivo.  

As sensações vinham a ele com certo atraso, vez por ora batia com os dedos do pé no chão e depois uma dor lancinante subia até seu cocuruto, fazendo-o ver estrelas âmbar e violeta. Os murmúrios aumentavam a cada passo e a uma certa altura, tateando, percebeu estranhas formas macias na parede. Em determinados pontos algo se abria e dava pra sentir uma umidade – haviam bocas nas paredes! Sensuais e úmidas bocas que o convidavam a ouvi-las de perto. Era quase irrecusável o convite de cada uma. Nizhus recostou-se em uma parede para tentar ouvir o que dizia e sua bochecha foi tragada, fazendo-o penetrar em uma estranha vivência.  

 

  

SARA 

 

Down in a hole and I don't know if I can be saved  

See my heart I decorate it like a grave  

You don't understand who they  

Thought I was supposed to be  

Look at me now a man  

Who won't let himself be   

Down In A Hole – Alice In Chains 

 

Olhou de perto os cortes em seus pulsos quase cicatrizando, pensou em Igor, que se recusava em tratá-la como uma pessoa normal em pleno século XXI. Lembrou-se de que ele havia gastado uma nota preta para comprar uma cozinha dos sonhos de qualquer uma, mas se recusava a aceitar que ela não curtia aquele lance de cozinha, amava mesmo era as coisas de designer, queria ser a Philippe Starck mulher.  

O babaca acha que é meu dono só porque tirou minha virgindade. 

Invadiu o recinto a mosca, sutil como a brisa... Nizhus alinhava-se a Sara. 

Igor sempre insistiu que existia todo um universo além do muro em frente à janela do design em cujo patamar ela costumava ficar plantada fitando. Todas as linhas da natureza, as formas e a harmonia com que a realidade era posta à sua frente tinham sempre algo a dizer, ela interagia como uma jogadora de búzios à frente do espetáculo do design do mundo. Quantas e quantas vezes não deixara de fazer coisas, ir em lugares por causa das linhas em seu campo visual do momento que lhe sugeriam mal agouro?  

Conversava com as formas. Seu lance sempre foi o abstracionismo poético, via o mundo por trás dos mesmos óculos que Kandinsky usava. O tempo poderia se desdobrar em várias direções por detrás das linhas de uma casca de árvore. Às vezes pareciam-lhe inconcebíveis alguns padrões naturais que observava em coisas simples, então obcecava e desenhava. Desenhava até descobrir um padrão irmão melhorado do natural e esse processo poderia durar dias. Sonhava com eles.  

Poderíamos estar grávida. Sentia-se estranha há umas duas semanas. Algo respira, ajeita-se, alguém diz-me coisas ao pé do ouvido da intuição algumas vezes... 

Seus pais depositaram muitas expectativas nela, tudo o que não conseguiram na vida, esperavam que ela conseguisse – mó clichê! Por isso sempre foi um poço de frustração. Coitados. 

Hoje meio que se responsabilizam por ela ter sido apenas alguém no mundo. Esperavam que fosse a próxima Prêmio Nobel. 

Seu pseudo-marido gastara uma grana com psiquiatra.  

Ela sabia, poderia mudar tudo, tentar uma nova paixão, Reiki, Nova Era, Religião, Farmácia, artes marciais, viagem, pintura, Teatro, cuidar de idosos, adestrar periquitos... Era só mudar de obsessão, desistir desse lance de Design e mudar de foco.  

Sabe pra caralho! Sabe do mecanismo da vida, tudo é mutável, só precisava esperar mais um pouquinho e evitar uma tragédia com esse ato impensado e nos satisfaria em nos lembrarmos de tudo isso estando mais estável, mudada... – blá!!! Por outro lado poderíamos começar tudo de novo (se fosse permitido pelas leis naturais, se fosse certo tudo aquilo que dizem os indianos, budistas, espíritas e alguns cientistas modernos), de repente nascer numa família que nos amasse, sossegados, sem conflitos. Conhecia uma pá dessas! Poxa, por que só ela foi obrigada a ter o comportamento comprometido daquele jeito? Neurótica! Psicótica! Vivia desenhando nos cantos da mesa com gotinhas d'água do copo enquanto todos esperavam algo de concreto dela na hora da janta. Sempre alheia, conversando em outra língua consigo mesma, fazendo versos sem nexo, delirando, falando surrealismos obscenos, sendo desconcertantemente non-sense, fitando as quinas das paredes.  

Mas poderia renascer! Voltar como um verme de bosta ou até mesmo desaparecer de vez. Quem sabe dizer se a vida não é o que chamam de morte e a morte não é o que chamam de vida? Diria Eurípides. Quem haveria de saber?!? Nenhum religioso preconceituoso, sádico enrustido ou alguém que entrega sua vida e sua verdade a um conceito exterior a ele mesmo poderia enfiar o dedo sujo de desajuste natural e fanatismo cego na cara dela. Até poderia na vida real, mas não num tribunal supremo. 

Tudo estava bem, até então, conhecera o pôr do sol em Kasantip na Ucrânia após uma noite de êxtase e lágrimas, ouviu o Tui, pássaro neozelandês a acordar depois de uma semana e meia dormindo em banheiros públicos, de malas nas costas e ir ao primeiro backpacker sem conseguir nem falar de tão chapada; visitar o Museu Van Gogh em Amsterdã após ver um público na praça torta assistir um alien tocar violão, acordar seminua na praia em Maceió, tirar fotos e mandar aos amigos mais próximos pelo correio, como cartão de natal, inspirar-se com o que a Arte podia fazer com as pessoas quando recitou poesias ao som de jazz nas baladas sujas da Augusta. Viveu a cota que achou que deveria, na boa, então achava que podia quebrar uma barreirinha. Estava de saco cheio do papo da autoajuda. Os tempos mudaram muito rápido ultimamente, mas a condição humana não. Que fiquem os bem-sucedidos, louros e musculosos do hemisfério norte! Estávamos saindo fora, só isso, sem alarde.  

Olhávamos para a janela da frente e imaginávamos o estrago que poderíamos fazer na cabeça da vizinha, sossegada, que assistia a TV. Não dá pra sair desse mundo sem fazer alarde, também, dentro desse reality show barulhento em que vivíamos!  

A mãe dela, religiosa, lânguida, humilde de dar dó, pessoa que fala baixo para não incomodar, sorri de tudo, não reclama de nada, passiva, vai ter o coração esmigalhado. O seu Osório, seu pai, cuja expressão que mais se ajustava ao seu rosto era a careta com dentes cerrados de ódio e frustração por não ter seguido a carreira no Exército; cerceado, pois havia se casado cedo por causa da filha primogênita; este haveria de ficar arrasado também, ao seu modo temperamental, latino... mas o que poderíamos fazer? Cadê os direitos sobre sua própria vida?!? Nunca fora dela, esse ato será como um assalto.  

Ante nossa tela mental contemplávamos Sara nos tempos da faculdade de Administração, que escolhera em nome de uma ilusória satisfação financeira. Lembrava-se amargamente da exata fase quando decidiu que não iria mais prostituir sua alma gastando o coração aprendendo como ser líder de porra nenhuma, com gente com menos a ensinar do que ela mesma; tipo de gente que rotula de Ciência ou Arte a obcessão por mandar para insuflar o próprio orgulho. Gente que brinca de ser alfa em qualquer grupo – e grupo este que poderia mesmo ser amplo e numeroso, como grandes empresas ou mesmo cidades e até mesmo nações. Estas ante as mesquinhas aspirações do líder são reduzidas ao nível de bando. Nunca conhecemos ninguém com esta natureza que não fosse um pouquinho cuzão. Lembrava-se das discussões em sala de aula, vazias, porém acaloradas e em especial uma, cujo tema era Ética e cujo professor nunca havia lido uma linha sobre Filosofia e, miraculosamente, não tinha a menor sóbria ideia de qual era o papel de sua classe no planeta... Naquele dia sentiu-se sozinha e perdida mais uma vez dentro de suas roupas. 

Roíamos a unha ouvindo o som no último volume. Dava para ouvir o interfone tocando e o infeliz enfezado do outro lado, cuspindo a cota de impropérios que sua ética lhe permitia e engolindo o resto com fantasias violentas sobre ela no hall de entrada. Estou farta! dizia de si para si com ele na intenção, você vai sufocar sua raiva para sempre depois de ver meus miolos indecentemente pelo chão hoje, seu merda!  

Tocava You know You Are Right do Nirvana e nossa autopiedade era gigante. Lembrava-se de Igor estapeando-lhe a cara naquele dia fatídico, quando achou que ela o traíra, pensou que olhara para seu primo no churrasco, estava bêbado. A baixa autoestima falou mais alto e ele armou o maior xabú, fez toda a família passar vergonha no sítio em Itabuna. Dia ensolarado, piscina, cerveja, tsc, tsc... Tudo para o espaço depois que ele começou a perguntar em voz alta se ela queria dar para o Rogério. Bateu em sua cara na frente de todo mundo, ainda fez a família acreditar que ela era realmente a vagabunda e depois se arrependera. Ela havia prometido para si mesma que nunca mais deixaria alguém fazer isso depois do bosta do seu Osório, mas aconteceu de novo e depois daquilo nunca mais seria a mesma pessoa. Bêbada quase todo dia...  

É isso aí, chega de demagogia! – pensamos. A última dose de vodka e uma baforada na mamica do esmalte amarelo (que passou displicentemente bêbada, cobrindo parte do dedo de unha roída imaginando o efeito que a cor causaria em meio aos miolos) para dar coragem. Revemos de novo seus motivos escritos em vermelho na última página do caderno das aulas de administração: 

Coisas das quais vou me despedir para sempre (espero de todo o coração!): 

Preconceito, rejeição, xenofobia, ódio, truculência, violência, sadismo, intolerância, racismo, especismo, estereotipia, homofobia, ditadura, fanatismo, genocídio, armas, DOR! 

Clausura, tortura, humilhação, fome, acidentes, doenças, asfixia, soterramento, queimadura, choque, 

estripamento, solidão, pânico,  

SOFRIMENTO! AGONIA! 

Penas, condenação, abuso, injustiça, futilidade, promiscuidade, frieza, constrangimento, vergonha, dó, revolta, indignação, 

RELIGIÕES, TRADIÇÕES E CULTURAS QUE INFLINGEM DOR! 

Em especial: 

1 – Da fome na África e de seus investidores; 

2 – Das crianças refugiadas pelas guerras em nome da religião e subproduto da ganância de alguns empresários e causada/permitida pelos governos; 

3 – Dos ursos que vivem trancados em jaulas tão pequenas que não permitem que eles se movimentem, tudo isso para que sua bile seja extraída por um cano enfiado em um buraco constantemente aberto em seus estômagos (POR CAUSA DE UMA BOSTA DE CULTURA MILENAR!!!); 

4 – Das porcas que vivem trancadas em jaulas minúsculas/celas de gestação de fast-food e são mantidas apenas para amamentar futuros porquinhos condenados, que são castrados à sangue-frio e são torturados por babacas; 

5 – Dos golfinhos que morrem todos os anos em nome do luxo, petulância e da ignorância; 

6 – Das escravas sexuais, das castradas, das 

apedrejadas e metidas em burca;  

7 – Dos amores fracassados, depressão, tristeza, 

8 – Dos talentos esquecidos, ignorados,  

9 - Dos políticos desalmados que chacinam 

indiretamente por dinheiro e dormem bem; 

10– Das estupradas por tantos homens que perderam os cabelos, foram queimadas por pontas de cigarro na cara e daquele que enaltece esse estilo de vida indiretamente; 

11 – De todo o genocídio e maldade feita aos animais todos os anos e ter de fazer parte da raça que impõe isso, de saber que muitos dos produtos que chegam a mim têm origem no sofrimento animal e de saber que sobrevivi à custa da dor deles; 

12 – Dos que nunca tiveram mãe; 

13 – E porque um dia sempre se é machucado por quem se ama. 

Suspiramos e acrescentamos: 

P.S.: Essa gente é muito loira, musculosa, superficial e muito truculenta para uma neurótica como eu. 

 

Amarramos o moletom e postamo-nos do outro lado, cantando um pouco de She's Lost Control do Joy Division, que estava rolando dentro do apê.  

... Confusion in her eyes that says it all... 

Já de pé, do outro lado da sacada, segurando o parapeito por trás, sorrimos para a vizinha do apartamento da frente no oitavo andar.  

... And she gave away the secrets of her past... 

Aquele frio na barriga de quem sabe que vai descobrir algo instigante.  

... And of a voice that told her when and where to act. She said I've lost control again... 

Nosso último e buliçoso gesto antes de a vizinha gritar absurdamente foi abrir os braços como se para abraçar o vácuo e sentir todo o potencial do frenesi sobre nosso corpo. Encaramos primeiro as meias – uma amarela-mostarda e a outra rosa-pink suja, o moleton azul-marinho e depois, entre nossos pés, o chão, como se fôssemos a adolescente apaixonada vendo o amado entrar no momento antes de correr e pular em seu pescoço. Dissemos para ela mesma, para mim, aos seus melhores companheiros – nossos ouvidos – que aquela seria a última porta que transporíamos e, finalmente, mergulhamos dezoito andares morte adentro.  

Adeus mundo errado! 

 

A cabeça foi cuspida com um empurrão. Ouviu gemidos e risadas infantis na escuridão.  

Uma mão suave deslizou sobre suas costas. Sentiu um sopro em sua face e viu um sorriso ao longe. Ao seu lado alguém cantava uma canção de ninar: 

Boa noite, meu bem 

Durma um sono tranquilo 

Boa noite, meu amor 

Meu filhinho encantador 

Que uma santa visão 

Venha à mente encantar 

E uma doce canção Venha o sono embalar... 

Nizhus se levantou, apoiou-se na parede para não cair e uma das bocas sugou sua mão para dentro. Uma tontura lisérgica o arrematou. Puxou-a de volta e com o canto dos olhos viu um homem ninando uma criança, quando tentou fixar o olhar a imagem sumiu. A escuridão foi substituída por uma luz amarela profunda, quase marrom, quase vermelha. Viu lábios rosa-pink brilhante se movendo quase que imperceptivelmente. Estavam vivas, as bocas, e respirando de uma forma sobrenatural, nutridas pela parede, a matriz.  

Todas aquelas vivências que estava experimentando eram apenas uma gravação na parede. Esta era a sua trajetória, como uma pintura rupestre em movimento e ele a estava apreciando e refletindo.  

Corpos gigantescos brilhavam sensuais no horizonte, acariciavam-se na paisagem e ao que parece estavam bem longe. Nizhus sentiu-se tonto de tanto desejo, desta vez tinha certeza de que tudo era real e queria fazer parte daquilo.  

O cheiro era inebriante, um perfume inefável, de alguma forma opiáceo, não apenas feromônico. Decidiu-se por perseguir as formas e entrou em um labirinto de espelhos e vidros. Por vezes enxergava pedaços de corpos suados se movendo, ouvia gemidos, vultos, corpos esmaecidos passando pelas superfícies. Via formas convidando-o, mas frustrava-se ao perceber que eram miragens. Em uma determinada parte do caminho reparou que os moldes dos espelhos e colunas eram feitas de pedaços de corpos ambissexuais vivos e se mexiam lubricamente. Parou no meio do caminho e ficou a encostar-se e deliciar-se convulsionante naquela arquitetura viva como em uma sauna. 

Mordia e era mordido, era lambido, lambia... Muito tempo se passou quando teve um lampejo e viu-se de fora. Deu-se conta do quão miserável era aquele estado, pois era vazio de propósito e imaginou que poderia viver a eternidade estacado naquela situação. Assustou-se ao constatar quanta energia era requisitada e demandada e percebeu que quanto mais abria-se ao deleite, menor era o resultado. Algum tempo depois despertou para um novo fato: estava em um processo e, – pior! – estava minguando, tornando-se pequeno, seu corpo escasso de recursos para outras atividades senão para aquele deleite – seus braços estreitavam-se em apenas um único e robusto dedo com uma unha mole, seu rosto era composto apenas de língua e olho. Sua barriga, peito e pernas haviam desaparecido dando lugar a apenas um pênis que se mexia como verme e emitia uns estalos... Então negou tudo em um ato de desespero! Repudiou seu corpo e os apelos começaram a ficar maiores. Os gigantes no horizonte passaram a se exibir a Nizhus e agora, pareciam se aproximar sorridentes exalando seu cheiro carregado de feromônios. Apelavam mais e mais, parecia que precisavam dele, mas apenas o enganavam, pois o sexo não era o foco, mas sim a atenção dispensada a eles. Nizhus lutava contra seu corpo que parecia ter adquirido vida própria e se lançava por si só ao prazer. 

Após o primeiro esforço contrário à condição de escravo do prazer, um leve resultado foi percebido: ossículos despontaram aqui e acolá, junto a músculos e pelos, trazendo-o de volta ao seu aspecto integral. Houve um paulatino embate e Nizhus precisou de muito tempo para retornar à sua constituição original. Foi um trabalho de reconstrução que não teve um tempo definido, marcado por amnésias delirantes.  

Estava completamente atordoado, confuso, perdido. Não sabia o porquê aquilo tudo estava acontecendo: outras vidas, dimensões, bocas na parede... Aonde chegaria?!? Precisava encontrar um caminho de volta para uma estabilidade ou motivo plausível para aquilo tudo, de outro modo enlouqueceria. 

Quando deu por si, estava deitado. A boca na parede ao lado sorria sarcástica, porém, amistosa. Era pessoal: só ele e ela. 

Ela dizia: vem viajar? Vamos comigo?...  

   

YU LIN 

 

Pereça o dia em que nasci (...) 

Converta-se aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele, nem resplandeça sobre ele a luz. 

Contaminem-no as trevas e a sombra da morte; habitem sobre ele as nuvens; a escuridão do dia o espante! 

Quanto àquela noite, dela se apodere a escuridão; e não se regozije ela entre os dias do ano; e não entre nos números dos meses! 

Ah! Que solitária seja aquela noite, e nela não entre a voz de júbilo! 

Amaldiçoem-na aqueles que amaldiçoam o dia, que estão prontos para suscitar o seu pranto. 

Escureçam-se as estrelas do seu crepúsculo; que espere a luz, e não venha; e não veja as pálpebras da alva; 

Porque não fechou as portas do ventre; nem escondeu a dos meus olhos a canseira. 

Por que não morri eu desde a madre? E em saindo do ventre, não expirei? 

Por que me receberam os joelhos? E por que os peitos, para que mamasse? 

Porque agora jazeria e repousaria; dormiria, e então haveria repouso para mim. 

Com os reis e conselheiros da terra, que para si edificam casas nos lugares assolados. 

Ou com os príncipes que possuem ouro, que enchem suas casas de prata. 

Ou como aborto oculto, não existiria; como as crianças que não viram a luz. 

Ali os maus cessam de perturbar; e ali repousam os cansados. 

Ali o presos juntamente repousam, e não ouvem a voz do exator. Ali está o pequeno e o grande, e o servo livre de seu senhor. 

Por que se dá luz ao miserável, e vida aos amargurados de ânimo? 

Que esperam a morte, e ela não vem; e cavam em procura dela mais do que de tesouros ocultos; 

Que de alegria saltam, e exultam, achando a sepultura? 

Por que se dá luz ao homem, cujo caminho é oculto, e a quem Deus o encobriu? 

Porque antes do meu pão vem o meu suspiro; e os meus gemidos se derramam como água. 

Porque aquilo que temia me sobreveio; e o que receava me aconteceu. 

Nunca estive tranquilo, nem sosseguei, nem repousei, mas veio sobre mim a perturbação. 

(Jó 3) 

 

A corrente estava quente por estar há tanto tempo atada ao pescoço. Havia pelos por toda parte. Coçamos o flanco com certo cuidado mais uma vez, pois aquilo nos incomodava demais e não havia remédio, e o sentimos em carne viva. Um verme caiu, mexeu-se esquisito, doce. Nós o comemos.  

Tentamos dormir, mas já o havia feito o dia inteiro. Nossas juntas doíam. Queríamos nos mexer, alguém para nos tirar dali, aquela corrente era curta demais. Lembrávamo-nos de uma época em que ele corria por aí, tão rápido que poderia alcançar um pardal em pleno vôo. Já não sabíamos mais nada desta vida. Seria assim com todo mundo? 

Era o eterno jogo do desespero e resignação. Será que aquela vida teria fim? Seria o fim ganindo nas mãos desses caras? Estariam eles nos guardando para uma ocasião especial? 

Puxamos a cabeça com toda a força para fora daquela coleira de metal. A força era tanta que tremíamos. Chacoalhamos, roemos a corrente. Chamamos, chamamos e chamamos angustiados, mas ninguém ouvia, ou fingia que não. Latimos para o céu contando que o deus dos cães nos pudesse ouvir, pois na vida de cães tudo é milagre porque tudo é gratuito e inexplicável e tudo simplesmente é. Nunca ouvem, mas um dia hão de nos ouvir! Podíamos ouvi-los falando em outra língua, quadrada, cuspida.  

Queríamos poder falar, chegou até a tentar quando morava com a florzinha. Ela era doce, falava mansinho, acalentava, e ele tentava imitá-la, mas sua voz sempre saía diferente. Sua boca não mexia daquele jeito, porém ele a entendia. Um dia entrou no carro e eles, os pais da florzinha, abriram a porta e o enxotaram de lá no meio da rua. Ela não estava nesse dia... 

Arranhamos o chão, machucando a raiz das unhas gastas. Alguém andava lá fora.  

— Hey! E aí malandro! Qual que é a tua?!? Sai fora, vaza! — gritamos. 

Desesperamo-nos, quiséramos correr, forçamos a corrente cegamente de novo. Dessa vez nos sufocamos sem nem perceber, sentindo os olhos quase saltando para fora das órbitas, tamanha era a ânsia de que aquilo visse o tamanho de nossa raiva, visse que NÓS mandávamos naquilo tudo.  

Berros de esperança, dor, desespero e horror por trás da eterna parede de ladrilhos ensanguentada. A única coisa que restara dentro de nós compulsoriamente era um gemido e um choro. Por que as coisas teriam de ser assim? Via aqueles homens andando para lá e para cá cheios de tripas nas galochas e aventais. Sérios, de almas encharcadas de secura promovendo aquela gritaria diária. Sua alma saturara. Muito tempo se passou desde que chegou. Aí uma vez na corrente, nunca mais saiu para nada.  

Recebíamos uma tigela de água quando a outra secava, cheia de pelos e um prato de carcaça dos que ali estiveram gritando um dia. Comíamos perto das nossas próprias urinas e fezes, que às vezes ficavam por dias lá, juntando. Às vezes ficávamos com fome. Não sabíamos o que incomodava mais... a pele coçava pra caralho! Não dormíamos direito, chorávamos com os condenados à noite, coçávamo-nos... Será que não havia solução? Era o corpo inteiro!!! Passávamos o dia inteiro comendo aqueles vermes e insetos que andavam sobre nosso corpo, prendiam-se a nós para sugar nosso sangue. Às vezes os sentíamos andando, mas não podíamos fazer nada, pois nossas patas simplesmente não alcançavam certas partes do corpo, como o pescoço, na parte de trás. Nunca teve muita paz na vida. Achava que a vida era assim mesmo.  

Os caras entravam de manhã cedo, lá pelas 6 da matina e aí começava o massacre. Máquinas começavam a roncar se misturando ao grito dos que estavam lá dentro das paredes. O cheiro de sangue às vezes dava fome, trazia a tona o instinto, o ímpeto para correr, matar! Mas o dia inteiro víamos os defuntos saírem de lá carregados por aqueles homens. Não era natural, ninguém corria atrás da caça, ninguém dava chance para a sobrevivência. Não era mesmo natural, era uma injusta indústria da morte e de sofrimento. 

Vimos muita maldade, gente chutando porcos longe, jogando-os contra a parede, cortando-lhes o focinho para ver como era a sua reação, enganchando-os pelo ânus, tudo isso porque aquelas pessoas sabiam que os porcos iam morrer depois, então, tanto fazia. Mas fazia um tanto para os que estavam no entorno. Eles chegavam com o mesmo olhar: estarrecidos e desesperados, de quem passou a vida inteira trancado no escuro, ouvindo berros e sabendo que iriam morrer.  

Havia um tanque de água fervente logo na entrada, os indivíduos eram jogados vivos lá dentro e gritavam horrorosamente.  

Em encarnações depois aquelas lembranças, aquele crucifixo ensanguentado na parede haveria de me assombrar o espírito, fazendo-me indagar sobre a origem e sentido da dor, do porquê milhões de pessoas adorarem um cara de quem eles nunca viram e que foi supostamente crucificado para salvá-los num passado remoto enquanto todos os dias são torturados semelhantes senscientes em nome da gula e prazer, e para estes últimos, não há nem respeito, quanto menos uma oração. Que cara era aquele que ensinava sobre amor supremo, mas só uma parcela deste é válida? Por que as entidades que representavam o mal histórico, como o diabo, por exemplo, eram representados sendo possuidores de membros do corpo de alguns animais, como patas e chifres? Por que eram sempre os animais os primeiros a serem sacrificados em rituais de Candomblé? Por que continuam a lentamente perecer em sacrifícios Halal muçulmanos? Por que eram sempre eles nos rituais bíblicos só por causa do luxo de Deus, que gostava de seu aroma agradável? Será que um dia os humanos seriam capazes de evoluir ou sucumbirão em sua visão limitada? Quanta dor será imputada até que isso aconteça? 

A denominação cordeiros de Deus talvez fosse uma ironia religiosa... Tempos depois eu descobriria que havia motivo para tudo, que tudo se encaixava, que nem todo acontecimento tinha um motivo, mas havia consequências para todos os atos e que a dor era para ser transcendida. Tudo sob a ótica simples do karma, que nada mais é do que a segunda Lei de Newton aplicada ao fluxo universal. E, ao aprender a lidar com a dor, o estágio posterior a esta era sempre como um oásis reconfortante para a alma, além da presença do sentimento de heroísmo, que era inevitável. 

Alguns daqueles caras fedidos e ensanguentados às vezes chegavam perto mostrando aqueles dentes. Enxotávamo-los veementemente, com todas as forças e violência, sentindo medo de que viessem levar-nos lá para dentro. Quando vinham com os pratos de comida ou de água, sabíamos mais ou menos qual era o intento, então podiam se aproximar, porém o nervosismo e a falta de confiança eram constantes. Um deles gostava de chutarnos as costelas enquanto comíamos e chorávamos alto enquanto o monstro gritava mais alto ainda, querendo que calássemos a fuça. Cada chute daquele fazia com que ficássemos doloridos por dias, sem podermos respirar direito. 

Com os dias começamos a nos acostumar com a situação. Não iríamos sair dali mesmo, precisávamos nos acostumar. Passamos a dormir mais e ultimamente sentíamo-nos confortavelmente fracos. Já não tínhamos mais vontade de comer, os gritos na madrugada já começavam a ficar mais longínquos. Aí chegou uma hora em que se levantássemos a cabeça sentíamos uma tontura horrível, o cheiro insuportável e avinagrado de nosso corpo também estava longe.  

Numa dessas madrugadas, numa muito fria, tremíamos, tremíamos, porém sempre conseguíamos achar algum lugar na alma onde podíamos nos abrigar. Já conseguíamos conforto com mais facilidade do que o usual – só que dentro de nós, de nossa doença. Havíamos descoberto algo importante – o refúgio interno. Só nós poderíamos nos abrigar em nosso mundo e isso era como um acalento materno. Então, como se mais nada carecesse de sentido, aquilo parece que nos libertou, pois foi por causa desse abrigo que paramos de sentir dor e frio e pude retornar da onde vim. 

O retorno fora como emergir de lágrimas sagradas sendo puxado por mãos amigas por várias camadas, sem parar. Foi sendo puxado por longo tempo. Havia um certo prazer em ascender daquela maneira, haviam sorrisos e bálsamo, cristal e seda misturados ao movimento leve. 

  

     

ARAMIS 

 

Vimo-nos em uma estrada, dirigindo um carro, com o sol nascendo bem na nossa frente. Usávamos uns óculos quadrado que imitava casco de tartaruga e ouvíamos Tom Jobim. Na boca havia gosto de lágrima, mas a sensação era de estupendo bemestar. Ao nosso lado as planícies iam longe. Verdes. Era como se não houvesse donos para aquelas propriedades. O ar era o fresco da madrugada. Eu não entendia o bem-estar. Chegamos a gemer, tocamo-nos o rosto, apreciávamos as cores de tudo.  

Demos sinal, ligamos o pisca alerta e paramos no acostamento.  

Não havia absolutamente ninguém na estrada. Descemos do carro e ficamos esperando até que alguém passasse. Tom Jobim penetrava fundo agora. Reparamos que dirigíamos um Corcel. Desligamos o motor e ficamos apreciando as cores do Sol nascente afastando o pouquinho de névoa da estrada. Ao longe ouvimos o canto de um pássaro que nunca havia prestado atenção antes. Era progressivo, não-repetitivo – criativaço. Seria o tal uirapuru que deixara o Villalobos louco? Seria o rouxinol? Era extasiante! Dei-me conta de que estávamos chapados de ácido. Sim! Mas senti um amargo, um abandono. Havia um grande gap. As lembranças começavam a se esvair, começavam a ficar vazias de sentido, tudo estava muito complexo em minhas lembranças: Ctulhu, Réquio, o decaimento... Minha própria constituição anterior já era agora apenas uma intuição. Sentia que precisávamos descansar. Mas descansar aonde? Aliás, melhor pergunta é: aonde esse cara havia-nos levado naquele momento? Ou qual seria seu nome? 

Reparei em sua roupa, vestíamos jeans cós alta, camisa xadrez, tênis e um relógio enorme. Fomos até o espelho retrovisor e olhamos seu rosto. Estava completamente descabelado e suando: a noite passada havia sido daquelas! Dessa vez o destino havia sido legal e ele até que não era feio, mas também não era nenhuma beldade. Fomos até o porta-malas e constatamos que havia roupas, livros e outros badulaques. Havia um pouco de comida enlatada, lençóis, uma camainflável... Estaríamos de mudança? Esse cara também não ajuda! Estava muito louco para se lembrar de qualquer coisa e eu ficava correndo atrás dele para podermos entrar em sintonia.  

Fiz ele tirar a carteira do bolso e vimos que lá haviam alguns cruzados, cartão de crédito, seu R.G., carteira de motorista: Aramis Corrêa. Caramba! Valeu por informar nosso nome! A foto na carteira mostrava uma pessoa equilibrada, adaptada à sua vida e ao mundo ao seu redor. Quase sorrindo, vestia uma camisa azul claro com a gola pontuda e a barba estava coisa de dois dias por fazer. Atrás de si um profundo abismo branco visava o possuir e o tragar na informalidade... 

Entramos no carro novamente. Partida. De volta à estrada.  

Havíamos perdido completamente a noção de velocidade e sabíamos que isso poderia tornar as coisas perigosas. Aramis não sabia nem em que estrada estávamos. Precisávamos parar de qualquer jeito em algum lugar, mas onde? Ele sabia que em poucos metros haveria de encontrar alguma placa.  

Estava difícil controlar os movimentos naquele momento. Diminuímos a velocidade, pois estávamos realmente sem noção. Ele tomara um ácido e eu não paguei nada para viajar – awesome! O negócio é que eu precisava dar jeito na situação e evitar sermos tomados pelo pânico. Precisávamos continuar dirigindo, nem pensar em parar ali! Precisava pôr nós dois fora de perigo e achar um lugar seguro até a loucura passar. 

Eu parecia o irmão mais velho de mim mesmo...  

Desliguei o som ejetando a fita para podermos ouvir melhor o motor, deixando Aramis com uma certa abstinência e sentimento de contrariedade. Estávamos a cem quilômetros por hora e percebemos que mais adiante havia uma placa. Reconhecemos que estávamos dentro do estado de Santa Catarina. Mais adiante havia um hotel. Respiramos com muito alívio. O relógio analógico do console marcava 7h23am.  

Encostamos, estacionamos, abrimos o porta-luvas e lá dentro encontramos várias fitas, caixa de óculos, o manual do carro e um walkman. Pegamos o walkman, enchemos a mão com umas fitas (eu queria entender o que ele costumava ouvir. Me liguei que estávamos nos anos 80. Ele só queria uma trilha sonora) e saímos.  

Percebemos que havíamos estacionado entre duas vagas, mas não conseguiríamos fazer melhor naquela situação – nem pensar em ligar o carro outra vez!!! 

Encaminhamo-nos para a entrada do hotel com o frenesi revolucionando no estômago. Eu estava embriagado com a situação surreal. Sentíamo-nos bem, apesar de achar que eu não era a melhor companhia dele. Seus passos eram lentos, eu sentia o peso do corpo em cada um deles. Seus sapatos pretos cintilavam vermelhos. Seus tornozelos suavam... 

A recepcionista esperava sorridente. 

— Bom dia.  

— Bom dia — pastoso. 

Balbuciamos. Apontamos a tabela de preços. Uns lagartos de neon subiam pela garganta com o êxtase. Ajeitamonos, apertamos os dentes e tentamos novamente.  

— Eu queeeeeeero um... um... é...  

A moça desesperou-se de leve com nosso estado e a dificuldade do figura na frente dela. 

— ... hum — gemi. 

— Apartamento? 

— ... só por hoje. 

— Senhor, temos vagas no quarto standart, no sênior e no presidencial. Qual o senhor prefere? — informou, deslizando uma régua de metal num enorme livro de frequência à sua frente. 

Atrás dela o calendário informava que era vinte e três de dezembro de 1989. 

— O mais barato. 

— O istandarti — standart com o i substituindo letras mudas, como todo bom brasileiro. 

— Sim... 

— São cem mil cruzados, mais o early check-in que fica em setenta e cinco, senhoooooor — o prolongamento fora alucinação.  

Escolhemos pagar com o cartão de crédito. Ela sacou um talão com os formulários de transação a crédito com papelcarbono, o mata-borrão e inquiriu-o sobre algum documento dele. Demos-lhe e enquanto ela escrevia a quantia e seu nome, ele tentava lembrar como era a assinatura olhando o documento do lado contrário na mão dela. Era de quebrar as pernas de qualquer um! Éramos dois convivendo no mesmo corpo, mas um deles não queria ajudar e fugia como criança pois estava doidão... 

— O senhor tem direito a estacionamento, café-damanhã e o check-out é ao meio-dia de amanhã. 

Fleck-shock, fez o mata-borrão. 

— Para fazer ligação externa é só discar o zero, mais o número — disse, entregando-nos o cartão e o documento. — Se quiser falar na recepção é só apertar o 1. O café-da-manhã é das seis às oito e meia. 

Deu-nos a chave e, apontando para a escada intimamente pitoresca e colorida, informou que nosso quarto era no primeiro andar à direita.  

Ao escalarmos a escada, percebemos que os degraus aproximavam-se mais do que o normal de nós e, no corredor verde-claro ensolarado do primeiro andar, as linhas do chão xadrez marrom e creme enceradíssimo pareciam estar no fundo de uma piscina. 

Ao chegar ao quarto, jogamos as fitas na cama – agora podíamos curtir um pouco.  

Havia uma televisão em um suporte preso à parede na frente da cama. Nunca confiou naqueles troços... 

Algumas coisas começavam a fazer sentido. Algumas memórias mais recentes começavam a ressurgir. Eu havia me dado conta de que Aramis havia se separado naquela noite. O nome dela era Veridiana e sua mágica estava em seus olhos verde-escuro, envolventes, rodopiantes, lentos, idílicos, calmantes como jardim japonês seviciado...  

Namoraram por alguns anos até que a relação havia ficado morna. Ela achou outro e ele simplesmente acomodara-se esperando que as coisas acontecessem como supostamente tinham de acontecer. Aquela havia sido a última noite e ele se recordava de que não sentira exatamente o coração dilacerado ou coisa parecida. Não sentia dor de perda nem nada disso, sentia apenas um certo tipo de piedade pela história que não aconteceu. 

Havia chorado sim, e tinha plena consciência de que era abstinência não dela, mas de alguém que ficara por ali saciando sua necessidade de complemento, em tudo o que envolve uma relação: principalmente a resposta fácil ao apelo tanto físico quanto emocional. Suas relações eram principalmente estímuloresposta. Qualquer uma. Não havia a intensidade da adolescência, mas o vício estava ali. Era simples e previsível brigar ou fazer sexo. Não eram mais pessoas em uma relação, eram peças de um jogo de xadrez instintivo.  

Como sentiu abstinência e não havia perdido o controle, resolvera encher o carro com as coisas que estavam na casa dele, foi a uma balada e depois de ter tomado um ácido (resposta para aplacar a abstinência) resolveu viajar para Santa Catarina, uma vez que estava às vésperas do Natal. Ela, Veridiana, havia esperado até a última hora para dar sua sentença, num show de travestis em uma casa da boca-do-lixo, loucona de poppers – droga do circuito gay importada da Europa. Não entendera muito bem a estratégia da moça. Ela estava relutante. 

Na frente da janela e NU, lembramo-nos do walkman. Caímos na cama para escolher a fita. Trovejava. Ficamos entre dois lançamentos que comprara antes de viajar: As Quatro Estações da Legião e Burguesia do Barão, que ainda estavam embrulhadinhos. Eu conhecia os dois plays e fiquei muito animado com a possibilidade de redescobri-los. Tinha certeza de que Aramis iria adorar, afinal... Abrimos o lacre da fita do Legião com a ajuda da chave do carro, certificamo-nos de qual era o lado A e a colocamos no walkman. Eu estava mais empolgado que Aramis para ver a reação dele. Com uma força tremenda fiz questão de não sentir nada que estragasse a descoberta daquele cara (que era eu ontem) de algum lugar, de algum universo. 

Levantamo-nos e fomos até a janela de novo para ver a chuva começar a cair antes de começar a primeiríssima faixa. Deixei ele fazer o que queria. Ele desceu o lábio superior na janela sobre o céu quente e úmido como vagina. A faixa branca era longa. Então Há Tempos começou com aquela pegada que parece feita de líquido amniótico, familiar, suave e selvagem, como criança doente. Quando Renato Russo cantou a primeira faixa, algo inigualável invadiu todo nosso ser, um arrepio violento, um êxtase incontrolável, um suspirar com soluço de choro, uma vontade de extrapolar o corpo. Aramis gritou pela janela a plenos pulmões, eu aumentei o coro depois. Soluçamos alto ao som da chuva. Ficamos arrepiados durante toda a música. Toda a tristeza da existência morava dentro da garganta daquele cara. "O QUE TE FAZ TÃO MARAVILHOSO, SEU FILHO DA PUTA?!?"! – gritava Aramis. – As frases impecáveis, certeiras, pegam no calcanhar de Aquiles! Foda. Renato chorava o choro de toda uma geração, de todo um país. Até que no final deu uma lição de moral válida a toda Humanidade.  

Ele ia voltar a fita, mas quando Quando Pais e Filhos começou, Aramis desabou. Já estava acabado, o coitado. Quantas vezes, anos depois, não choraria sozinho ouvindo aquela fita de novo...  

— Que play, Legião! Que play, Legião!  

Esses eram os anos 80, tudo era à flor da carne, aos berros, do jeito latino.  

Feedback Song For a Dyig Friend, Quando o Sol Bater Na Janela do Teu Quarto e corremos para ouvir Legião no meio da chuva, à beira da estrada. Quando a menina da recepção nos viu descalço, sem camisa, só de calça jeans, com o walkman enfiado num saco plástico e usando toucas de banho pra proteger o fone de ouvido, ficou sem cor.  

Como a chuva de verão era libertadora! Ele falava com ela, ouvíamo-la responder de diversas maneiras, beijávamos as gotas que escorriam por nossa boca; chorávamos, descobríamos Deus em todas as partes. Fomos até o mato do acostamento e deitamo-nos lá, olhando para o céu. De repente começa Eu Era Um Lobisomem Juvenil e ele ficara tenso:...se, você quiser alguém pra ser alguém é só não se esquecer eu estarei aqui..., repetia para as plantinhas em francas lágrimas, como que na tenra infância. 

Em um dado momento estávamos girando e cantando emocionados quando vimos um carro reduzindo, parando para estacionar e arremetendo para pegar a estrada de novo. 

A viagem decorreu assim, causando o maior constrangimento na frente do hotel. Não se sabe como não havíamos sido presos naquela manhã. A mina tinha sido bem legal com a gente, mesmo quando entramos molambos, cheios de barro, pingando e chorando pelo hall, diretamente para o quarto, enquanto ela apenas perguntou (claramente preocupada, com a mão ao peito...) se estava tudo bem. 

Ao chegarmos ao quarto, tiramos a roupa, atiramo-na no banheiro, e contemplamos o silêncio de pé, com as mãos semissuspensas. As paredes se mexiam. Sentimo-nos mal, expostos, sozinhos, perdidos... Bad trip! Algo aqui em nossa cabeça, além de nós, nos dizia bem-feito, quem mandou usar droga! Era verdade. Havia um vácuo em nosso peito e esse vácuo queria colabar o tórax.  

 

As cortinas batendo e o calor do Sol do outro lado causavam um certo incômodo. Sentíamos como se estivéssemos perdendo o dia dormindo. Sabíamos que estávamos às vésperas do feriado mais famoso do mundo, porém sabíamos também que o sol naturalmente impelia as pessoas a fazerem algo fora dos casulos.  

O check-out fora acertado ao meio-dia quando outra recepcionista havia ligado perguntando se gostaríamos de estender a diária. Vestimos um shorts, camiseta, chinelos e descemos. A outra recepcionista fora muito profissional, afinal é claro que ela sabia do ocorrido, mas não o demonstrara em absoluto. Haviam outros hóspedes sendo atendidos lá, um senhor de bigode, sua esposa que segurava a mão de um moleque de sandálias, tímido, olhando de soslaio e se escondendo atrás do pai. Sorrimos. 

Rumamos para Ferrugem, em Garopaba e lá passamos o feriado bebendo, usando pó, e babando encima das minas, com a puta paisagem linda como pano de fundo. Não foi uma putaria generalizada, mas fizemos questão de esconder o medo dele sofrer a falta da Veridiana enchendo a cara e nos divertindo.  

Esquecemo-nos do rolê, tão loucos que estávamos. Acordamos bebendo de garrafas espalhadas pela casa alugada, compartilhando com quem havia acordado por lá também.  

Na madrugada do dia primeiro do ano de 1990, Aramis então com 29 anos, e eu, Nizhus, sua essência-guia sem idade definida, seguíamos para São Paulo na Régis Bitencourt completamente bêbados.  

Não tinha a exata noção da minha presença ali, não como sendo um agente externo. Era duas vezes jovem, triste ou feliz, estava vivendo o momento como nunca e não havia nada de realmente importante em ter-se livrado de mais um amor: uma traveca linda de pau pequeno e peito grande, que comia ele de vez em quando, desde que a curiosidade virara madura assunção.  

O corcel ia zunindo pela rodovia enquanto lembrávamos o dia em que conhecera Veridiana quando ele bebia no Maksoud Plaza. Eu acompanhava seu passado com extrema familiaridade, ia lembrando, descortinando.  

As luzes do hotel o convidavam ao pileque e o pianista tocava Dave Brubeck. Eram umas oito da noite. Ela – uma transformer fenomenal, ao estilo anos 2000, elegante, feminina – que olhava para Aramis com malícia empunhando um copo de ginger mary enquanto conversava com uma amiga e dois engravatados descontraidamente no bar. Claro que eles se ligaram e depois de um tempo ela levantou o copo sorrindo, acenando para ele. Ele levantou-se e foi até lá galantear. Ela estava claramente dando em cima dele e isso Aramis adorava nos travecos – não havia tempo ruim.  

Sua boca era de um tipo juju lips coberta de batom vermelhão, tipo grossos, seu rosto não deixava sobressair que ela era homem, sua voz tampouco. Estava metida num vestidinho colado, deixando mostrar umas pernonas deslumbrantes, maquiada e de cabelo feito - tipo castanho liso e armado, como de embalagem de tinta para cabelos, de forma que sua silhueta ficava charmosa quando jogava-os – porém, estava virada da noite anterior.  

Havia conhecido os figuras engravatados no rolê. Eram de Minas Gerais, estavam a trabalho. Ela morava por ali mesmo, com amigas, era jornalista freelancer. Naquela época havia bastante preconceito, porém ela possuía muitos amigos na praça. 

— E aí, como é que é? — balançou o copo, um dos caras. 

 

Ih, tava curtindo uma bobeira ali, sentado — disse Aramis meio blazé. 

— É, cola na gente! — disse o outro. 

Estavam com cocaína até os ossos. 

— Eu sou o Marcão, meu parceiro aqui é o Toni, a gatinha aqui chama-se Valéria e a bonitona chama-se Veridiana. 

E você? 

— Eu sou Aramis. 

— E aí, Aramis. Muito prazer — disse Valéria. 

— Legal — disse Veridiana 

— Poxa, a gente vem lá de Minas. Temos um esquema pra resolver aqui, mexemos com construção — disse Marcão. 

— É, e conhecemos as gatas ontem numa casa noturna — disse Toni. 

— A Up And Down, conhece? — Valéria perguntou. 

— Pra falar a verdade não. Onde fica? 

— Na Domingos de Morais — disse Valéria. 

— Ah... — fez Aramis. 

A Up And Down é a casa mais dançante de São Paulo 

e fica ao lado da Casa de Deus — disse Veridiana. 

Todos riram. 

— Sim — disse Toni. — É porque tem uma igreja ao lado onde se lê: A Casa de Deus. Engraçado o contraste com slogan da Up And Down... 

— É só passar lá e ver! — disse Veridiana. 

— Mas e aí, bicho, qual é a sua história? - perguntou Toni. 

— Eu tô aqui só pra transar uma bebidinha, meio largado, esperando pintar algum lance. 

Lambuzavam-se! Os olhos de Toni e Marcão pareciam dois pires. Valéria tinha uma caca verde-claro recorrente no nariz. Veridiana olhava para tudo quanto é canto. 

— E vocês duas, fazem o quê? — perguntou Aramis curioso. 

— Eu sou decoradora — Valéria. 

— Jornalista freelancer — Veridiana. 

Mas e você, bicho? Você tem cara de... Deixa eu ver. 

— Marcão pôs a mão no queixo. — Já sei! Dono de cinema! 

— Dono de cinema?!?! Não força! 

— Não, bicho, eu trabalho com importação e exportação. 

— Caramba! — exclamou Toni. 

— Que barato! — Marcão. 

A conversa ia sem muita variação até que Marcão e as meninas levantaram da mesa para ir ao banheiro e o esperado aconteceu. Toni chegou perto de Aramis e disse: 

— Então, a gente tá transando um negócio da pesada aí, cara. Coisa fina. 

— Ah é? 

— Sim, tamo com uma poeira esperta aí. Um tremendo furacão. 

— Tá pra mim — sorriu Aramis. 

— Então tá, quando o Marcão voltar você cai pra dentro junto comigo que a gente vai descolar esse barato. 

Minutos depois Marcão vinha que vinha parecendo um animal acuado, mordendo os lábios, apertando as mãos, pisando 

 

leve, ligeiro. Quando pegou o copo Aramis percebeu que seus braços estavam picados. 

— Vamo nessa! — disse Toni, levantando. 

Jogou o barato em cima da carteira. Tremia que nem vara-verde. Aramis ofereceu-se para esticar. Foram duas lagartas. Ele mandou primeiro. Quando Aramis mandou para o nariz quase que não conseguia respirar, tossiu e em três segundos estava anestesiado. O negócio era bom mesmo. 

Naquela noite foi se recuperar do tiro muito tempo depois. 

Voltaram para a mesa e conversaram alucinadamente. Sem perceber Aramis já estava enroscado e se amassando com Veridiana. 

Naquela noite ele a convidara para ir ao motel. Foram em um na Raposo Tavares e ela acabou dormindo enquanto ele ficara ouvindo jazz a noite inteira na banheira, tomando cerveja, olhando para o ladrilho cujo desenho era uma paisagem grandona pintada em azul contra o branco e mostrava uma foto bucólica de uma fazenda. Ficou brincando com o vaporizador de sauna e o teto solar. Até tentou acordá-la, mas ela estava acabadaça. No outro dia ela ainda havia inquirido o infeliz do porquê ele não havia persistido mais... 

Naquele dia treparam o dia inteiro e uma parte da noite, quando ele resolveu que iria embora. 

— Aonde você vai? — perguntou ela preocupada. 

— Por aí. 

— Fica?!?  

— São Paulo nem é tão grande assim, honey — riu-se com a ironia. 

— Não demora, senão eu te esqueço... 

Fez-se um silêncio entre os dois e daquele momento sabia que a história entre os dois iria longe. Anotou o telefone dela num fósforo do motel e em pouco tempo estava enrolado na rotina de Veridiana e seus casos policiais. 

Foi depois dessa quase-mulher que Aramis descobriu que o amor marital era pouco mais que adicção – bem pouco! Que causava prazer e dor e é regido por sentimentos de posse, dependência e abstinência de substâncias como endorfina e dopamina. É um forte regulador da autoestima, do humor e é uma base de conduta... Aquele era um dos mais fortes atenuantes para o crime passional no tribunal... 

 

As lembranças do ano que passou iam ligeiras com as faixas da Régis. A bebedeira parecia ter se alinhado ao ritmo monótono do volante.  

Todas as incoerências nas relações humanas, os acontecimentos que de tão tristes bloqueiam a compreensão, as ironias casuais, todos os acontecimentos de grande magnitude que influenciam o destino de todos eram ignoradas por nós. Cada ciclo na espiral ascendente do fluxo universal já começava a ficar óbvio e não conseguia mais identificar se era algo trazido como herança das encarnações passadas ou se eu estava me identificando com o estágio da vida de Aramis. Será que Aramis sofria de depressão crônica e eu estava tomando aquilo como meu? Ou será que isso estava sendo passado de encarnação para encarnação? O problema é que dividíamos esse sentimento de desprezo pelos acontecimentos em grande escala, gostávamos de nos deixarmos levar pelo fluxo, sem controle, pela vida. Mas será que isso era falta de tesão por viver, de escolher rotas, de planejar, de atuar, fazer parte? Aramis só havia ficado triste por dois acontecimentos de 1989: a morte de Raul Seixas e de Salvador Dali. O resto, como o trágico acidente da Varig, o famoso Voo 254, em que o canalha do comandante Garcez deseja um bom final a todos, ou o naufrágio do Bateau Mouche, onde morrera a atriz Yara Amaral, as comoções públicas, passaram quase despercebidos por ele. Mesmo a Queda do Muro de Berlim ou os protestos na Praça da Paz na China estavam muito distantes da sua realidade e para ele simbolizavam apenas mais uma volta no espiral. Esperava mesmo era que o próximo presidente resolvesse a questão do Cruzado, aquela inflação galopante que enchia o saco de todo mundo (mas as esperanças quanto a isso também eram meio pálidas, ralinhas) e o dia de sua morte. 

A vida de Aramis não era de se reclamar. Trabalhava com o pai numa firma de importação e exportação – bom negócio! Tinha um apartamento confortável em Higienópolis, viagens, carro, boa comida, boa bebida, enfim, tudo o que qualquer um queria. Ele só sofria com os outros – animais e humanos. E por isso passava longos tempos enchendo a cara, afundando o fígado na garrafa e depois retornava a sobriedade com forças renovadas. Era um ingênuo! Um moleque! Sabia nada! Nada do fluxo. 

Tudo isso pensávamos com o vento nos cabelos já meio ralos. A cabeça meio para fora, a mão no vento úmido e a estrada só para a gente quase. Brincávamos com o carro de vez em quando, meio que para acordar a nós mesmo. O rádio estava fora do ar há um tempão e estava bem baixinho, quando nos ligamos e resolvemos escutar Claude Debussy. Tinha uma fita com os prelúdios melancólicos do gênio, Danseuses de Delphes, combinava muito com a madrugada e conseguimos paralisar o pensamento de nós dois que batíamos o maior papo acalorado na base do crânio de Aramis.  

Um assombro penetrou todos os espaços do carro quando Aramis descobriu que eu estava realmente presente no carro. Que estávamos falando alto, interagindo, ele até via aquele alien sentado ali ao lado o tempo todo inconscientemente. O assombro foi tanto que tivemos que parar o carro numa estradazinha de terra lateral à estrada principal para pôr as coisas em ordem. Nizhus era outra consciência, sim, mas ao mesmo tempo era Aramis. Tipo éramos nós na mesma vivência. Quando a pessoa se sente replicada aí o negócio complica. Aramis tomou consciência do fato e isto implica em dizer que ele se dera conta que estávamos realmente vivendo um evento de magnitude e bizarro. Olhamos para o lado e sentimos que víamos eu, Nizhus, com os olhos de dentro. O coração pulava, ele suava frio. Era uma sensação paranormal.  

Saímos do carro para tomar um ar e de repente sentimos náuseas, a pressão baixou, sentíamos que iríamos desmaiar e voltamos a sentar-nos. Precisava parar de beber, pensamos que estávamos fracos. Momentaneamente a visão ficara mais esmaecida, mas voltara com força quando reparamos numa mulher chorando sentada no chão logo a frente. A tontura desaparecera com a visão: morena simples, com o cabelo crespo meio preso num rabo-de-cavalo, meio baloiçando ao vento. Estava com uma blusinha de alça bege, shorts de jeans curto e uma sandália de dedos azul-claro. Os dedos dos pés e das mãos estavam com um esmalte vermelho todo descascado. Era mignon, baixa, o tipo comum brasileiro, pernas fortes. Bonita, aparentava ter seus 30 anos.  

Fechamos o carro e fomos em direção à mulher. Estava a uns 200 metros. Com certeza ela chorava por causa de marido, namorado ou coisa parecida. Mas ele iria ver o que podia fazer pela moça, afinal, poderia ser outra coisa, né. E se pudéssemos ajudar? Vai saber! A possibilidade de poder ajudar outra pessoa aliviava a nossa própria dor. Sentíamo-nos completamente recompostos, estávamos novos. 

Chegamos mais perto e ela reparou em nós. Sentamo-nos ao lado dela de pernas cruzadas. 

— Que foi, moça? 

Ela olhou-nos com os olhos mais dignos de dó do mundo. Um beição de dar inveja a qualquer criança. Quase a adotamos naquele momento. 

— Meu pai... 

— Sim, seu pai...? — indagamos. 

— Ele nunca bebeu nem nada, sabe... sempre foi um bom homem... bom marido... trabalhador.... — falava, enumerando nos dedos da mão direita. 

— Sei. 

Suas palavras eram entrecortadas por soluços profundos. 

— Já tem um tempo que ele começou a fazer umas coisas estranhas... 

— Que tipo? 

— Falar sozinho... se esconder debaixo da cama com medo de não-sei-o-quê... Ele tá louco! Ficou louco... 

As últimas palavras foram prolongadas por uma voz aguda e dolorida. Foi quando ela desabou e começou a chorar alto. Nós a abraçamos. 

— Moça, aonde ele está? Quer que eu vá lá falar com ele? 

— Moço, não entra lá não. Ele tá estranho. Eu nunca vi meu pai daquele jeito. 

— Mas ele tá agressivo? 

— Não! De jeito nenhum, meu pai é um homem de 

Deus! Quer dizer, agora... Vai saber, né! 

Limpou o nariz. 

— Ele tá peladão sentado no meio da sala, mandou eu sair da casa que ele estava limpando tudo para o despacho — soluço. 

Abriu uma bocona e chorou esticando um fio de baba que descia até a perna. 

— Deve ser coisa de macumbaria. Eu não sei, moço, eu tô perdida, não sei o que fazer, tô preocupada! Moço... 

Olhamos para a humilde casa de tijolos à vista com um monte de coisas para fora: televisão, cama, criado-mudo, tapete, utensílios, geladeira...  

De repente surge o velho peladão, com marca de sunga, cantando com uma voz lacônica, põe um vaso delicadamente no chão. Possuía a mesma tonalidade da pele da filha, com os cabelos branquinhos, barbado. Mãos de trabalhador do campo.  

Reparou em nós e acenou sorrindo com uma dentadura que fazia seu rosto ficar jovial. Curiosíssima figura.  

Resolvemos ir até lá só para darmos uma sacada. 

— Bonita, peraí que eu já volto. 

— Moço, vai lá não! 

— Calma, moça, fica em paz.  

Quando levantamo-nos no intento de irmos até a porta, o velho postou-se na soleira e pôs-se a olhar para nós com um olhar tão vazio, mas tão oco, tão opaco e sem vida, que estacamos de tanto medo, tamanho foi o contraste entre os semblantes em tão pouco tempo.  

O velho continuava impassível. Olhava no fundo dos nossos olhos. O que parecia ser a luz de uma lanterna acendeuse atrás do velho. Era paranormal. Olhamos de volta e a moça estava séria e esvaziada de alma também, opaca, semblante inanimado. Parecia que nem havia chorado. Tivemos a sensação sobrenatural de que estávamos penetrando em um ambiente selvagem, longe daquele mundo de estrelas e astros da tevê, que precisava ser mantida na normalidade, na rotina, para que a vida fosse suportável. Se isso era bom? Não, estava na cara. Estacamos de novo. A estrada estava absurdamente quieta. O mato atrás da casa também: nenhum vento, nada! 

Pelo canto do olho capturamos uma sombra esquálida passando por uma das janelas. Naquele momento achamos que iríamos perder os sentidos. De repente por trás do velho algo que parecia ser uma membrana com gânglios movimentando-se por baixo projetou-se através dele, encobrindo-o, encobrindo a casa. Luzes amarelas e vermelhas, purulentas e sanguinolentas, giravam por dentro da estranha membrana. Percebíamos rostos ancestrais/arquetípicos encobertos lá dentro. Vinha em nossa direção.  

Ouvimos a voz daquele senhor nu. 

— Então é você que ele procurava? Esse aí é seu vampiro matemático. Pode levar ele com você. Eu não quero isso aqui não. Segura! 

Vampiro o quê?!?! 

— Todo mundo tem um desse, mas esse aí, com você, precisa voltar agora. Ele veio atrás disso aí, ó! 

O tal vampiro continuava se mexendo liquidamente e a cada vez que traspassava o corpo de Aramis um poutporri de lembranças ruins inspirava medo, raiva, tristeza, angústia e indignação, corroendo-nos por dentro. Era realmente dolorido. Uma dança bizarra. Vinha atrás de nós, que nos esquivávamos aterrorizados. 

— O pessoal aqui tá me perguntando o que você vai fazer. 

— Não sei! Não sei! — gritávamos desesperados, com a esperança de que alguém na estrada pudesse perceber o absurdo que estava acontecendo, porém a estrada estava como se nunca alguém houvesse dirigido nela antes. 

O chão tremeu. 

— O menino aqui precisa ir embora. 

Reparamos que a forma de um garoto de shorts, camisa xadrez e sandálias, tipo menino da roça, de cabelo emaranhado, estava meio atrás daquele senhor nu. 

— Tão dizendo que precisa ser agora. Tem que resolver. 

Vampiro matemático! Vampiro matemático! Ia e voltava. Quando passava por nós a sensação era de um choque, uma queimação, um ardor nas entranhas. Podíamos sentir o cheiro de dentro de nós, de nosso espaço em comum, da carne de Aramis queimando quimicamente. A cada tentativa de nos afastar o vampiro parecia colar-se no corpo de Aramis.  

O moleque se aproximou e telepaticamente falou fica em paz e aceita ele. Olha no olho dele e ame-o. Era difícil! O medo era maior, a repulsa... 

”Pare de alimentá-lo, ele vai ficar maior! Tô avisando!” 

Agora ouvíamos um barulho ensurdecedor de uma batucada com o beat crescente, o céu estava bordeaux, haviam flashes como em balada gótica. Começavam e paravam em faixas rítmicas. Sentimo-nos como em Sodoma e Gomorra sendo tomada por alienígenas. Estávamos enrolados até a alma no vampiro. 

Resolvemos olhá-lo de perto! Com coragem. Um espelho se quebrou dentro da casa, mais os vidros do carro ao longe, violentamente. 

Ele é pesado, mas dá pra atravessar com ele, Aramis. 

O sorriso do vampiro era tóxico, pálido, sarcástico. A membrana esvoaçante era cortante.  

“Tudo vai mudar. Essa é a boa escolha que você faz por nós.” 

Seu sorriso foi se esmaecendo. 

Ouvimos risadas funestas de dentro da casa e voos interdimensionais. O vampiro esmaecia. Eu esmaecia. Bem como Aramis...  

           O ranger de dentes era insuportável! Barulhento, aflitivo. A raiva irradiava pela espinha dorsal e vazava pelos dedos das mãos, líquida, antes de jorrar no chão e se amalgamar como ódio. Havia esse impulso gratuito sem nenhum destinatário, nem causa ou origem.  

Bandos de chimpanzés destroçavam um macaquinho bebê, um leão comia seu próprio filhote, havia uma agulha que transpassava o pescoço, atrás do maxilar de alguém, um homem roia o osso do seu próprio punho, encarava Nizhus e o fustigava em uma das galerias daquele museu dos horrores. O cenário era abissal: um corredor úmido com correntes e ganchos pendurados, jaulas dispostas com semi-seres dentro, espinhos, caules nas paredes se partiam fazendo um estalo repentina e constantemente. Nizhus pisava em pedaços de carne, o cheiro de sangue, vômito e química – creolina, cloro, éter... – ardia os olhos, revirava o estômago e era intenso. Estranhamente Nizhus sentia o repentino fluxo de raiva tendo alguma vazão e, automaticamente sentia prazer.  

De repente, do nada, um homenzarrão vestido de vinil com cornos na cabeça aparece correndo do meio da escuridão e projeta-se sobre Nizhus, que cai para trás batendo o cóccix no chão. Mostra os dentes pontiagudos, quebrados, e por entre eles e as narinas sai fumaça.  

Nizhus viu a cena real de um fim de tarde após uma batalha de Vlad, o Empalador. As vítimas agonizando e escorregando devagar nas estacas sob o sorriso do psicopata ao pôr do sol cataclísmico. Outro homenzarrão apareceu, e mais outro. Seus olhos eram cobertos pelo que seriam as pálpebras – costuradas.  

Quando percebeu Nizhus estava cercado pelos furiosos musculosos no meio do corredor, melado de sangue. A raiva de Nizhus se transformara em medo e desespero. Eles eram maiores do que o normal, agigantados e possuíam pelos castanhos nos ombros. Seus pés possuíam unhas grossas e encardidas, pior que de mendigo antigo. O hálito deles nauseava Nizhus, que afastava o rosto. Reparou que o teto era um tecido como o do vampiro matemático e rodava como um anticiclone. Eles gritavam, escandalizavam, brandiam grandes massas, o cutucavam, pretendiam assustar e o faziam. Arranhavam o rosto dele com suas unhas sujas – mais rápido que o olhar, havia um largo corte ardente. Rapidamente o pano que girava foi deslizando por argolas e as paredes foram se desmoronando num abismo vertiginoso. Em cada ruína, cada pedaço de pedra do abismo havia uma amazona alada, dotadas de rabo, tipo pintura de aerógrafo para capa de revista em quadrinhos, QUE RIAM da cara de Nizhus. Sobrevoavam-no e urinavam sobre ele – vagabundas! 

Nizhus arfava, grunhia, murmurava impropérios e rezava. Quanto mais fazia isso mais ouvia gritos desesperados.  

Algumas daquelas hárpias comiam as víceras de um homem vivo, sossegadamente. Ele, por sua vez, agonizava revirando os olhos com seu cérebro idealístico embebido nos enlevos da endorfina, narcoléptico. Suas tripas brilhavam e exibiam veias enegrecidas à luz rubra da migalha de céu entre as pedras. Não havia mais saída. A corporificação do câncer requisitava a alma de Nizhus para desenvolver-se como se fosse o parasita de si próprio, ostentando suas presas alucinada, delirante. 

Ele não tinha outra saída, o pânico era aparentemente intransponível. Tudo tinha muita vida, muita presença, era real. Até que em um determinado momento Nizhus sentiu uma pausa no ritmo dos eventos e teve tempo para achar a descontinuidade daquela dinâmica. Sentiu que agora era a sua vez. Precisava tomar uma atitude, fazer algo, era o outro ciclo do espiral investindo contra ele.  

Instintivamente resolveu soltar-se e ficar à mercê da situação. Ouvir seu próprio barulho e administrá-lo. Sua mente era o lugar mais seguro do mundo mais uma vez desde a vivência do pobre cãozinho Yu Lin. Porém naquele momento algo era diferente: o neófito Dhaen suspeitou da autenticidade de todo aquele teatro barulhento e então toda a loucura escondeu-se no claustro de onde surgiu e de onde pertencia, silenciosamente, harmoniosamente.  

Aquela aberração, que naquele momento era apenas um simples lençol sem vida jazendo no chão, era o vampiromatemático que Nizhus havia criado. Havia escravizado o menino já há algum tempo naquela época e fora este mesmo que havia criado a situação para atrair Aramis e se libertar.  

Todo sentimento ruim que Nizhus carregava durante suas encarnações animava aquele ser semi-independente. Todo o medo, preconceito, ressentimento, raiva, ódio, davam formas àquilo e era alimentado pelos algoritmos emocionais que Nizhus fornecia. Tinha as características que o neófito dava a ele e a proporção plástica também. Cabia a ele revivê-lo e este voltaria a persegui-lo onde quer que estivesse.  

Continuou caminhando pela penumbra. Desta vez o clima – seguindo o previsível ritmo natural – assumiu características suaves, como madrugada no jardim de verão. Cavalos espectrais corriam como em câmera lenta acima de Nizhus. Flores brancas e azuis enormes pairavam como pipas.  

Como tudo em sua vida, não havia uma sequência lógica nas encarnações ou mesmo naquela trajetória em particular. Entendeu apenas que tudo aquilo estava diretamente relacionado ao carma e aprendizado. Parecia que havia um padrão de dor infligida e revolta, que era recorrente. Quando aprendeu onde mora o alívio e o resto de tudo o que precisava, como que migrara para outra de suas vidas. Teve de lidar com o ressentimento, a raiva, o medo, a luxúria e todas as emoções ruins arquivadas, as reações pré-estabelecidas, as cargas que suportou durante muito tempo nos planos densos e até mesmo sutis. Nizhus percebeu que precisaria lidar com todos esses elementos para tentar mudar o padrão a partir da encarnação da qual vinha e, para isso, teria de salvaguardar-se da miséria espiritual e da falta de sentido. Mas será que voltaria a ser Ângelo? Qual seria o caminho de volta? Nizhus estava à beira da paranoia, como de costume. 

Havia algo a ser feito em relação ao sofrimento e ele descobriu que se ficasse se digladiando com emoções e prazeres baratos acabaria definhando e sua vida perderia o sentido. Provavelmente a ele restaria o lugar-comum dos seres mais elementais, mais rasos, cujo tempo para passar de estágio era imprevisível. 

Começou a entender que não estava simplesmente sendo impelido. Que as situações apareciam conforme as necessidades dele e, conforme agia segundo a sua verdade, com honestidade, e não conforme seus instintos (conduzido e cego) sintonizava-se e assim coisas mágicas começavam a acontecer… 

 

  

ARIADNE 

 

Acordou. Quem acorda? - Buddhi (SERÁ?) 

 

Ariadne observava o fim de tarde cataclísmico de Central contra a fraca luz azul de seu apartamento ao perfume de chá de anis. Sentada no largo parapeito da janela ela meditava.  

Com seu anulador de sons desligado podia ouvir o barulho ritmado de seu pulmão artificial e toda sorte de ruídos produzidos constantemente por Central. Não que o anulador resolvesse alguma coisa, uma vez que era só mais um ruído no meio daquele mar de gente amontoada, inquieta, inoportuna, porém era um som constante de estática que fazia com que pudesse se concentrar melhor sem ter que interpretar constantemente os sons externos. No fim das contas o que se tinha em abundância naquele determinado momento da história daquele lugar era uma espécie de silêncio artificial. Ela já havia se acostumado ao pulmão, pois este era uma das únicas e obrigatórias próteses, em meio a toda sorte de próteses que eram produzidas e que eram fornecidas pelo Sistema, o governo mundial, para que se fosse possível sobreviver a esta nova natureza modificada. Outra dessas próteses era o regulador químico, que contrabalanceava todas as substâncias do corpo controlando estrategicamente o humor da população... 

Sentia sua lente ajustando o foco para captar algo estranhamente colorido se mexendo no céu longínquo. Triangulou a localização média e vasculhou a rede para ver quais microcâmeras pairavam perto dali para oferecerem-lhe melhores imagens, mas não, aquilo era apenas um espectro, quiçá uma alucinação produzida pelo seu sistema nervoso ancestral já tão corrompido. Porém poderia ser realmente uma bexiga vermelha pairando sem destino no céu. Sentia mais uma dose de endorfina sendo carregada para ser lançada em sua corrente sanguínea logo... 

No ano de 2100 o conceito de vida havia sido radicalmente transformado e de forma muito repentina, se analisado ao véu do contexto histórico da própria vida na Terra, como a conhecemos. 

Com os espantosos avanços da ciência outro reino havia sido criado a partir do Reino Animal – o Reino Tecnológico. 

Isto basicamente por causa do poder autorregulatório e autooperante que as máquinas adquiriram paulatinamente. Os robôs haviam se integrado à vida de tal forma que seu ecossistema estava em vias de suplantar o ecossistema mais antigo. Tudo isso passou a acontecer após o desenvolvimento dos computadores quânticos que começaram a operar com softwares genéticos, que forneceram características biológicas para a geração de dados. Estava-se a um passo da perigosa capacidade de programar a matéria. 

A Terra era um ambiente inóspito onde todos os animais foram exterminados, morreram à míngua e foram substituídos por quiméricas organizações nano-robóticas multicelulares cuja evolução fora vertiginosamente rápida. Porém, ainda neste estágio não possuíam inteligência o suficiente para totalmente tomar o lugar dos humanos. Por pouquíssimo tempo, afinal as novidades eram repentinas, contínuas e constantes nessa época. 

Nós, os humanos, estávamos no meio da transição e a condição era peculiar e curiosa. Quase todo o corpo humano poderia ser substituído por próteses e a constituição de cada indivíduo poderia ser analisada acuradamente de forma simples e rápida, daí materiais próprios eram utilizados em cada caso. 

Além do mais, a maioria das organelas e microorganismos das quais éramos constituídos haviam sido substituídas por nanorobôs, tornando a maioria dos corpos compatíveis com a maioria dos materiais. Próteses simples poderiam ser feitas em casa e a instalação feita por médicos por uma mixaria. Além disso, os materiais tinham a capacidade de evoluir conforme as necessidades do corpo. 

Havia uma camada econômica da sociedade que continuava dominando as outras, curiosamente em sua maioria eles tinham quase todo o corpo substituído e eram quase imortais, exatamente porque seus cérebros ainda não poderiam ser completamente substituídos, porém investiam pesado em ciência para que isso acontecesse sem demora. Os mais ambiciosos projetos tinham como função desenvolver um dispositivo capaz de conter e armazenar a consciência, as memórias e a personalidade de uma pessoa normal. É como se uma pessoa fosse capaz de migrar de um corpo para outro completamente artificial.  

A principal preocupação dos humanos nessa Era era de cunho Ético: se o fruto dominante do reino emergente ultrapassasse os humanos será que possuiria algum tipo de senso moral ou herdariam o nosso? Se este último acontecesse estaríamos em bem má situação, afinal, somos o exemplo perfeito de como uma raça superior subjulga, escraviza, explora, tortura, sacrifica e extermina raças inferiores... 

As viagens no tempo eram comuns, porém limitadas ao anos que vão de 2039, o ano que a primeira viagem oficial aconteceu com a câmara de imersão astral Stell, até o ano de 2155, quando acontece a singularidade, isto é, quando o Universo finalmente começa a ser programado em sua essência quântica e infestado e transformado com uma supremainteligência. Diziam, que não há aparatos humanamente possíveis para sobreviver nesse tempo, por outro lado alguns segredos de Estado e até outros interesses permeiam de mistério esta proibição. 

O planeta finalmente foi envolvido por um governo mundial e está superpovoado. Como resultado a democracia foi transformada para sempre. O indivíduo por sua vez só tinha poderes em pequena escala, isto é, dentro das empresas, uma vez que a vida de cada um era controlada e vigiada pelos uploaders, a nova classe de trabalhadores. 

Os uploaders eram os que emprestavam sua consciência para a sociedade. Eram os vigias, os pesquisadores, investigadores, os descobridores da sociedade. Depois da revolução da nanotecnologia e da internet, microcâmeras dotadas de sensores de pressão, calor e outros aparatos passaram a ser produzidas em larga escala por um preço irrisório e já saíam das fábricas direto para a atmosfera, onde pairavam por aí. Mas qual seria a funcionalidade de uma dessas se não houvesse a quem fornecer informação? Aí é que entram os uploaders, isto é, gente responsável por analisar e catalogar o material de determinada quantidade de informações fornecidas. Recebiam bem por informação catalogada por critério de interesse. Eles poderiam, por exemplo, encontrar um tipo diferente de criatura no meio ambiente e fazer um upload disso para que uma grande organização mundial fizesse a análise da importância desse novo tipo de espécie e porventura enviasse uma equipe para fazer um estudo mais detalhado. Ao mesmo tempo poderia fornecer informações sobre o clima na região, ou mesmo ceder informações sobre danos na estrutura naquela mesma área.  

Além da função de pesquisa e monitoria, esta classe era paga para exercer funções de marketing. Muitas empresas privadas se beneficiavam com as informações coletadas, era o caso da indústria da moda, outro exemplo, que subvencionava pesquisas sobre o costume de se vestir em determinadas regiões da cidade.  

Eram os uploaders também que vigiavam e controlavam a sociedade, delatando crimes e/ou prevenindo acidentes, ou em outras palavras, vendendo sua consciência ao Sistema. Eram, claro, cargos de confiança e faziam parte do equilíbrio da sociedade. 

A geração de energia de antimatéria finalmente tornou-se acessível e produzida em larga escala e esta era a principal fonte de riqueza dos novos milionários do mundo.  

Outra fonte de riqueza bastante rentável era o oxigênio, que ainda era um vício de alguns seres-humanos e era produzido nas periferias dos conglomerados a partir da água por enormes reatores Sabatier e eram responsáveis pela introdução de milhares de metros cúbicos de oxigênio nas cidades, que eram subterrâneas, afinal o clima e o ambiente tornaram-se inóspitos e insustentáveis na superfície.  

A alimentação era produzida em laboratório integralmente. Nada mais era plantado. Mesmo os matadouros foram extintos com as vacas, porcos e galinhas, dando espaço para os centros de cultivo de carne de laboratório que dispensavam a manutenção do espécime integral vivo, apenas as partes que iriam parar no prato dos consumidores é que eram monitoradas. 

Ariadne era uma uploader e vivia em Central.  

Um breve sobrevoo sobre a região de São Paulo tem muito a revelar. Apesar da paisagem sombria e desoladora, ela possui muitos atrativos e chegou a ser apenas um conglomerado de bairros, mas com o tempo a megalópole paulistana deu origem a mais algumas cidades, entre elas Central, que como o próprio nome diz, estava situada no meio da cidade. Isso aconteceu porque, como um todo, a megalópole era difícil de ser administrada, então as subprefeituras ganharam mais autonomia e tornaram-se cidades distintas... 

Lembrava.  

Sua recordação automaticamente trazia da rede os dizeres de um informativo da época em que a cidade foi fundada. Podia ainda trazer à mente o exato pensamento sarcástico que teve quando viu o presidente local, membro populista da corporação mais poderosa do mundo subir ao palanque para dar satisfações, gravado no subconsciente da rede mundial. 

“É difícil enxergar a alegria do povo central-paulistano por trás deste véu marrom de smog denso e causticante, fruto da quantidade de poluentes que tornou o superaquecimento irreversível. Porém, por trás desse deserto, desse cadáver urbano, dessa ossada angular sem fim, por baixo dessa densa camada de concreto que por séculos foi sendo acumulada, respira uma cidade vibrante. Sim, meus amigos, eu sei!” 

 

Cantos esterilizados, pinos suspensórios em todas as paredes do apartamento minúsculo, ruídos externos... Eu flutuava pelo apartamento de Ariadne até ser atraído pelo seu corpo.  

— Cara, eu te esperei por muito tempo! 

Cheguei como um arrepio, um sopro gélido na testa. 

Sentamo-nos na cama e ela alisou o rosto. 

Perscrutava-me, era como se conseguisse me olhar. 

— Nossa, você consegue me distinguir em sua mente? — perplexo. 

— Fiquei por algum tempo dentro de um mosteiro virtual aprendendo a meditar com tutoriais. Aprendi a deixar meu humor estável antes de a manutenção química agir em meu corpo. Além disso, sou rígida praticante de ioga e mantenho uma vida estável, sem altos e baixos. O resultado foi que dentro do quarto vazio que é a minha cabeça, outra presença é facilmente detectável. 

— Nossa, vim bater na porta errada... — irônico, sempre. — Se liga! 

— Nossa, essa realidade me parece ser meio bizarrona, não é não? Andei passando por cada coisa... 

— O choque-ambiental poderia te fazer algum mal, mas aqui temos um regulador de humor instalado em nossa medula que mede e controla os níveis de todas as substâncias em nosso corpo. Isso quer dizer que se você começar a surtar esse detector automaticamente vai nivelar a gente. Além do mais você está comigo, relaxa, você não vai pirar aqui. 

Ela encarou-me.  

— Você ainda não sabe da importância de você estar aqui, né? 

— Olha, pra ser sincero, minha trajetória até aqui foi muito estranha. E tudo isso pra mim ainda tem consistência e textura de sonho. Sinceramente não sei o que está acontecendo. 

— Honestamente, eu também não. Isso é a vida, sem mapa nem roteiro. Não tenho respostas pra te dar, conselho nem nada. Sei da importância de você estar aqui. Também posso te dizer que eu sabia que você viria. Tem uma galera aqui querendo te ver, sabia? — fez uma pausa. — Mas deixa isso pra depois. Vamos curtir um pouco, você não tem muito tempo aqui. Deixa eu te mostrar umas coisas legais do futuro.  

Deitou-se de novo. Sorriu com a expectativa do que iria acontecer. Coisa esta que me marcaria como uma das melhores experiências de todas as minhas vidas. 

— Esse é um dos mais legais legados da História. Enjoy the ride... 

Com os dedos mais delicados do mundo, puxou a lista de músicas pessoal no ar e selecionou Echoes, clássica do Live At Pompei do Floyd, de 71. Fomos trazido direto para o centro da arena em Pompeia no momento de silêncio antes da música. Quando Richard Wright tocou a primeira nota, ali na nossa frente nos demos conta do que realmente estava acontecendo. Viamos o pessoal da equipe em silêncio observando-nos em expectativa. Olhámos meus dedos e reparei que tocávamos com bottleneck, éramos impulsionados pelas mãos mágicas de Roger Waters. 

Overhead the albatross 

Hangs motionless upon the air 

And deep beneath the rolling waves In labyrinths of coral caves... 

Dava para ver Roger passando mal no baixo, sob o sol mediterrâneo, marcando o tempo com a cabeça e respirando conosco. Três crianças ao longe, nas arquibancadas, atônitas, assistiam a tudo, completamente alheias à importância daquilo. 

... and no one called us to the land... 

O som colossal penetrava nossos corpos e nossas almas extrapolavam aquelas ruínas, tornando-as sagradas à nossa maneira.  

... and no one crosses there alive... 

O som era ensurdecedor saído daqueles amplificadores massivos, nosso corpo inteiro fluía com a banda através da guitarra. Sentíamos as falanges dos dedos calejadas pressionando as cordas, os músculos extensores e flexores do antebraço pelejando na retaguarda, compreendíamos tudo o que estava por trás das cortinas de todo aquele maquinário espetacular dos sentidos.  

... no one speaks and no one tries... 

Inundávamos aquele lugar com os eflúvios lisérgicos dos anos 70. Era uma saudação. Impregnávamos as paredes cheias de história, manchávamos de poesia moderna aquele santuário antigo.  

... no one flies around the sun... 

Durante o solo monumental tudo se dissolveu gentilmente e uma extraordinária força G tomou conta do ambiente insólito e solitário da câmara de uma nave espacial.  

Por dentro do capacete da roupa espacial do Dr. David Bowman, Floyd projetava-nos para o útero do Espaço Sideral. Ariadne levou-nos à versão sincronizada da música Echoes com o filme 2001 Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick.  

Ariadne chorava e ria, eu sentia o frio na barriga dela, seu sorriso estampado em meu rosto era de satisfação de fazer feliz a pessoa mais importante de sua vida: eu!  

Convulsionávamos, porém impelidos pelo fluxo corporal do doutor, jogando-nos para a próxima cena, naquilo que incrivelmente parecia uma alegoria da minha própria trajetória pelo Universo atrás de algo que não tinha fim: sempre a mesma pessoa vendo-se pelos olhos de outrem, descobrindo-se no outro, em um drama eterno.  

Engolia-me com suas pupilas abissais, por trás do implante da lente eletrônica, eu estremecia a me ver em minha forma feminina cósmica... 

No final da música, fomos ao toalet e tontos daquela enxurrada emocional. Achei que íamos desmaiar quando ela abaixou as calças de moletom cinza e sentou-se no tapete. Antes olhou sua genitália bem depilada sob sua barriga lisa (com algumas cicatrizes que mais pareciam caracteres de uma língua estranha) e sentiu um tesão inexplicável de si mesma. Em pouco tempo estava toda melada. Masturbou-se na frente do espelho, coisa que nunca fazia. O fez de olhos bem abertos admirandose, apertando o seio direito com a mão esquerda como se não fosse ela, mas sim outra pessoa abusando dela, pelas suas costas. Nossos olhos reviravam com força. Gemia alto, eu gemia em seus ouvidos. Seríamos nós uma aberração?  

Depois de tudo fomos à sua cama e deitamo-nos por algum tempo a olharmo-nos no teto, punha-me no centro, entre as luzes dicroicas da sanca. 

 

Foi necessário um tempo considerável e uma boa dose de g-aminobutirato (neurotransmissor calmante) até que pudéssemos reestabelecer as emoções levadas ao limite apesar do controlador de humor (que fora inteligentemente deslacrado e reprogramado por ela há uns anos atrás). 

Ariadne era esguia, baixinha, morena, possuía cabelos negros e traços meio indígenas, meio tchecos...Os lábios finos deixavam o conjunto dos dentes bem formados delineá-los, conferindo ao rosto um aspecto sério, mas quando sorria pequenas covas abriam-se e, geralmente era um sorriso tímido, sua face transformava-se em algo próximo ao infantil. E no lugar das pernas possuía apêndices com design simples e sofisticado muito mais funcional do que as pernas, feitos de um material siliconado, suave mas resistente ao tato. Não deixava de ser sexy. Pelo contrário, era de causar inveja em Deus, pois Ari era quase uma boneca. 

Ouvíamos Mars do Coltrane. As nuvens passavam rápidas, extranaturais pela janela.  

Abrimos um vinho da uva Cabernet Sauvignon, de 2012, australiano contrabandeado. Ruim pra ser sincero, mas coisa rara naquela época. Enchemos dois copos e com um em cada mão brindamos. 

— Cara, eu sinceramente espero que as coisas deem certo no mundo, sabia? Queria apagar o sofrimento da face da Terra. Mas parece que essa é nossa função, sermos os sentidos dela, uma vez que os oceanos e rios são a corrente sanguínea, o clima e os ventos, seus pulmões, o solo e rochas, seu esqueleto e assim por diante. O que fazer então quando a testemunha tornase o ator da bestialidade? — confessou, melancólica. 

— A gente precisa parar de se matar, logicamente. 

Uma lágrima rolou e foi logo enxugada. O choro foi suprimido. 

— É... 

Se ela fumasse acenderia um cigarro naquele momento. Sentimos a serotonina arrepiando o couro cabeludo. 

— Eu não faço nem ideia de como é seu mundo... — argumentei. 

— Vamos dar um rolê! Vamos conhecer meu mundo — disse, pondo-se de pé. 

Vestimos roupas esportivas e saímos. Ariadne abriu a porta e o apartamento entrou em sleep mode automaticamente. No hall do elevador o botão de subindo acendeu ao detectar o chip dela. Todos os dados eram enviados via rede. 

Ela se deixava guiar pela minha intenção. Olhamos para o corredor enquanto esperávamos pelo elevador. Havia muitas portas ali, mais do que o normal. Cada uma delas guardava uma família ou apenas um grupo espremido. O Programa Albergue Legal da Prefeitura dava conta de abrigar os que moravam sozinhos para assim dar conta de acomodar todos os cidadãos de Central, que era uma das mais populosas cidades do mundo em 2100, um verdadeiro colosso urbano. Era um programa que incentivava os solitários a dividir a moradia, tão disputada. Pagava-se uma ninharia para se ter apenas uma cama, um espaço na geladeira e um armário. Punha-se um cadeado e voilà! Dividia-se todo o resto, dos banheiros à sala de estar.  

Fomos até o acesso aos teleféricos da cidade, no terraço do prédio. Eram pequenas naves acopladas a cabos e barras de aço nos prédios e equipadas com pelo menos 30 assentos. Sim, e estava lotadão! Entramos em um e ficamos de pé observando as paredes dos prédios passando cheias de limo e fungos. Abaixo de nós, Central era um formigueiro.  

Olhávamos a cidade de cima quando fui assaltado por um sentimento de mágoa intenso. Via que naquela realidade não havia mais volta, que havíamos fodido com o mundo para sempre e nunca mais teríamos passarinhos cantando, mariposas entrando na casa no meio da noite enquanto jogávamos conversa fora sentados em cadeira de praia na varanda numa noite quente, tomando cerveja... Pensei em quando é que iria voltar para a realidade de Stell. Sentia saudades.  

Tentei ver o lado bom, os benefícios e encontrei pouca coisa. Só aconteceu agora porque havia interesse comercial envolvido. 

Nesse momento um rapaz moreno meio calvo com marcas de espinhas pelo rosto olhou inexpressivo para nós. 

Parecia normal, vestindo pulôver e calças cáqui. Não me parecia ter nenhum tipo de prótese estranha.  

Senti uma dose de dopamina sendo carregada com um clique. 

Era tudo muito estranho, o regulador implantado nas pessoas era ao mesmo tempo uma antena que fazia com que todos estivessem na rede o tempo inteiro e alheios à realidade. Havia lentes instaladas nas retinas e estimulantes neuronais que eram responsáveis por causar todo tipo de sensação e alucinação.  

Descemos em uma estação movimentada e caminhamos em uma rua escura, agitada, frenética, até um prédio antigo, com a fachada escurecida. Senti uma areinha batendo em meu rosto e, quando viramos em direção à luz dos holofotes, aquilo formava um arco-íris em tons de bordeux, passando pelo amarelo até o verde petróleo. Antes que a dúvida surgisse, Ariadne perguntou se eu sabia o que era aquilo, na negativa ela emendou: 

— São câmeras, baby! Acredita? As tais câmeras que dão emprego pra todo mundo. Elas estão dentro de você: no seu pulmão, na sua circulação... Quantas doenças não foram estudadas e prevenidas por causa delas. 

— Cacete!  

— Mas então quer dizer a gente é observado a todo momento e há tarados por tudo quanto é lugar pra ver a gente!?!?! 

— É, mais ou menos. Há regras e controle. Só os uploaders podem ter acesso às câmeras e há normas sérias para regular isso. 

— Há privacidade no banheiro? 

— Me diz uma coisa: qual foi a coisa mais bizarra que você imaginou ou fantasiou fazer que ninguém no mundo já não tenha postado na internet? Relaxa, doidão. 

É! Eu sentia que era eu mesmo falando pela boca daquela mina.  

Pegamos o elevador sujo e chegamos na frente da porta do apartamento. Um pop-up surgiu na retina informando que a campainha fora acionada. Alguns segundos depois, uma mensagem de voz surgiu também dizendo: 

— Olá! Já chegaram! — voz feminina em uma mensagem de voz. 

Era Steff. A porta destrancou-se e abriu.  

Entramos e pequenos leads vermelhos piscavam à frente indicando onde era o caminho para a sala do pequeno apartamento. As paredes eram meio amareladas.  

O corredor até a sala era cheio de quadros. Um deles, de um palhaço infantil chamou-me a atenção: era antigo, devia ser dos anos 70 do século 21. Muito conservado, porém sombrio. Sorria inocente, envelhecido, em suas vestes cujas cores foram um dia vívidas e alegres.  

Steff e Dominick estavam de pé, aguardando-nos no meio da sala. Ao adentrarmos fomos cumprimentados com vivacidade e sorrisos familiares. Até que reparei que eles nos observavam separadamente: eu e Ariadne.  

Steff era uma senhora atraente, com os cabelos encaracoladinhos, grisalhos e precoces por cima das orelhas. Mignon, morena, que ainda ostentava a altivez de outrora. Enrolada em um peignoir rosa claro e em pantufas de veludo. 

Falava comigo. Balbuciei algo. Senti que Ariadne me deixara sozinho dessa vez. Observava e sorria. 

Aquela à minha frente era Stell. A mulher pela qual eu havia me apaixonado há não muito tempo atrás. Será que era aqui que ela queria que eu chegasse? Aquela situação era insólita, afinal eu havia acabado de fazer sexo com... Já nem sei mais.  

A boca se abriu. O tempo havia dado um nó. Éramos quatro pessoas distintas, mas as mesmas, viajantes através das eras, sendo que uma delas era uma de minhas encarnações!!! Estávamos presentes em um momento singular, perscrutávamonos. Aquela pasmaceira era como se um homem da Renascença ouvisse rock and roll pelo celular.  

Dominik era um senhor com olhos cor-de-mel vivos, jovial, de barba cinza por fazer e calvícies leves. Rosto quadrado, ítalo-turco. Estava de robe azul-marinho aberto exibindo uma camiseta puída azul-clara onde se lia Midsummer Nights, shorts preto e chinelos. Foi o primeiro a se pronunciar com um sorriso precioso, fraterno – a cara de Anatole. 

– Meu amigo, é um privilégio dividir minha trajetória com você.  

Sua voz foi celestial naquele momento. O sol se punha e tingia de rosa as paredes da sala e os rostos daqueles dois seres, conferindo-lhes um ar cinematográfico. 

Uma porta bateu ruidosamente no corredor lá fora. Em seguida ouvimos um espirro. 

Fiquei imaginando que tipo de prodígio aqueles dois teriam dentro da manga naqueles anos 2100. Suas essênciasguia foram importantes personagens da História mundial e, como já é praxe, nunca vão ser realmente homenageados com nenhuma data especial, quadros, prosa, poesia, menção em sala de aula, nada. Ali naquele apartamento modesto éramos privilegiados.  

Sentamo-nos em um lugar num sofá/puff que parece ter sido feito para nós, para aquela ocasião, com uma colcha de juta jogada por cima e almofadinhas cor-de-rosa. A iluminação era fraca, basicamente da rua e de leads dos equipamentos da casa, além de quadros luminosos como vitrais, que se movimentavam dando vida ao apê. 

As vibrações dos teleféricos se faziam presentes, em cada apartamento via-se a estrutura do prédio. Não haviam casas naquele ambiente superpopuloso. Tive um insight profundo e todos sorriram. Estávamos interconectados.  

Eu elucubrava e palavras pairavam em nossa frente como manuscritos boiando na água calma. 

... então a morte é a carência de oxigênio? Ou a carência de água, de calor, comida, sanidade... de atividade?! O que determina a insalubridade de um corpo isolado, a carência? — Não existe corpo isolado. Não há carência. 

— Até a hora da janta muita coisa vai acontecer aqui nesse dia especial — disse Dominik.  

— Nossa, parece que foi ontem que estive com vocês — disse-lhes. — O que vocês estão fazendo por aqui? Tipo assim, vocês trabalham? Como levam a vida? E a Evolução Dhaen? 

Havia algo na aura de Dominik. Era uma massa azul ao seu lado que se movia independentemente dele próprio.  

— Espera aí, esse aí é...  

— Sou eu! — Velho exclama. 

Eu deveria me parecer assim para aqueles caras. 

— Essa reunião é um clássico! — disse-me Velho.  

— Você também tá nessa pira de viagem transcorpórea!!! Você passou das dimensões intermediárias? Mais sutis? Viu as harpias e os ciclopes? 

— Cada experiência é diferente, mas nós estamos praticamente no mesmo barco, cara. Na verdade aquilo é tudo coisa real da sua cabeça. Dá pra entender? — ri-se. — Nem alucinação, nem realidade. Lá onde os saltos quânticos acontecem, túmulo de estrelas e berçários de universos. Eu gosto de chamar aquele lugar de antirreino da antimatéria, o não-local. Ali onde se anula o tempo, onde se pesca luz... 

— Pode crê. 

Fodência da coerência... 

— Mas nossa consciência faz aquele lugar se tornar real. 

— É dali onde você escolhe para qual universo vai. Lá é como se fosse a encruzilhada do multiverso — completou Steff. 

— Mas você também tá viajando. Embarcou na câmara da Stell? — perguntou Anatole. 

— A história é longa...  

O corpo de Anatole expandiu e cintilou roxo e verde em uma pulsação inchada. Sua excitação é manifesta. 

— Hey, quer ver umas bizarrices? — perguntou empolgado Dominik. 

— Como assim? — respondi rindo. — Vai me levar a outra festa Dhaen? 

— Tem uma balada aqui chamada A Bolha. É uma chapação para a turistada. A gente conversa lá — disse ele, preparando-se para levantar. 

— Onde fica?  

— Você vai ver... 

— Bom, se a gente for vou precisar me arrumar. Dá uns dois minutos? — Steff. — Você vai assim? 

— Não, vou trocar de roupa também — Dominik. 

— Às vezes o nosso amigo aqui sai do jeito que está, de camisolão e o cacete, sabe! 

 

As ruas eram uma loucura, quase não se andava – era-se empurrado. Parecia saída de show. A maioria circulava aparentemente falando sozinha. Nada disso se parecia com a São Paulo dos anos 00, mesmo nas piores épocas de superlotação do centrão. Não havia comércio, restaurante, nada que pudesse piorar o rebuliço para a multidão, era um enorme corredor sujo e se você quisesse ir a algum lugar geralmente havia portas que se abriam conforme sua pré-determinação pela rede. Nada permanecia aberto. Em compensação na retina de Ariadne eram criadas propagandas conforme o interesse dela. Ela passava e conforme sua localização os lugares ao redor emitiam informações comerciais sempre tentando atrair. Sinais luminosos indicavam o caminho, se fossem acessados.  

Nós seguíamos Dominik e o programa de rastreamento no chip Ariadne dava-nos sua posição exata, caso ele se desviasse do caminho. 

Nesse segundo passeio pude comprovar quão esquisitas eram as pessoas dessa época: sorrisos metálicos, olhos robóticos nus, carne que cicatrizou encima do titânio (quando a pessoa não tinha dinheiro para o acabamento), plástico sujo saindo das pernas, formatos exóticos substituindo membros, cabeças diminuídas em seu tamanho, rostos tatuados com cores vibrantes, cabelos artificiais com tamanhos exagerados... Havia gente andando pelada e o que se via não era sensual nem de longe, eram quimeras que se sentiam por ostentarem um corpo híbrido, que misturava materiais de toda sorte, passando pelo silicone (nas zonas erógenas) e pelos polímeros em determinadas áreas. 

Ali embaixo sempre era noite. Os holofotes, em compensação trabalhavam incansáveis, iluminando exageradamente tudo para inibir crimes. Ao olhar para cima, via-se as câmeras flutuando formando um semi-arco-íris dourado, marrom e azul à frente da noite galáctica. 

Pelo mapa ao lado esquerdo acima víamos Dominik e Steff caminhando também. Estavam conectados enviando mensagens de voz.  

— Ari, acabei de ver um par de brincos que são a sua cara! 

— Capturou?  

— Vou mandar. 

Em segundos um pop-up com o documento pairava na retina de Ariadne. Os brincos eram enormes, em um material esverdeado, tipo bronze oxidado, rodeado por um cabelo cacheado extremamente brilhante e armado, tipo peruca de carnaval, em uma face nada atraente, com mandíbula postiça. 

— Feio pra caralho, Steff! 

— Desculpa aí, hein! 

As duas riram.  

A sensação dentro da cabeça de Ariadne era de placidez. Tudo acontecia ao mesmo tempo, porém nada penetrava nela com profundidade. Muito diferente de mim: intenso, profundo, neurótico, transformando qualquer nesga de luz em uma aurora, qualquer dificuldade em drama rodriguiano. Ali naquele cinema, naquele quarto escuro onde eu era espectador daquele sci-fi grotesco, eu experimentava a sensação de fazer parte do todo mais e mais. Sabia que éramos a mesma pessoa, mas ela era apenas uma possibilidade em um universo paralelo, porém era um lado meu que evoluiu! Foda. 

De súbito ouvimos sinos tocando de dentro do peito de Ari. Andávamos por uma ruazinha, podia-se ouvir uma festa na rua adjacente.  

Paramos na frente de uma casa e nos postamos ali para esperar por Dominik e Steff. Deviam ser umas 10 da noite, porém parecia dia. Vimos pessoas chegando, produzidas para a noite, vestindo vinil, com tatuagens no rosto, piercings ou apenas argolas em lugares inusitados, como dentro do olho, ou no lugar deles, no meio dos dedos, atravessando membros inteiros...  

Em segundos vimos Dominik aproximando-se no mapa. Logo após Steff. 

— E aí, a balada já tá lotada? — ironizou Dominik, bonachão. 

— Sei lá — eu disse. 

— Aqui nunca fecha, é sempre noite — disse Steff. 

Bem justo. 

No ato da entrada a quantia descontada automaticamente apareceu acima, na retina.  

O que se descortinou a seguir foi fantástico! Um salão imenso. Com aquários enormes lado a lado. Cada um contendo uma banda ou um artista dentro e um público próprio.  

— São placas de acrílico com vácuo entre eles pra garantir o isolamento perfeito, cara. BEM-VINDO À BOLHA! 

No teto via-se aquários contendo pessoas dançando mergulhadas soltando bolhas sem nunca voltar pra buscar mais ar. Elas riam, faziam jogos, tocavam instrumentos tudo isso submersas em estruturas de acrílico exóticas. Vim saber depois que o conteúdo na água era o que costumavam chamar de Aquaman Crystals, que é feito basicamente de cobalto, que rouba oxigênio do ar como uma esponja e pode ser usado por tempo indeterminado. Diz-se que 10 litros desse negócio pode absorver todo o ar de uma sala. Legal pacas! 

Sorríamos todo o tempo.  

Ao fundo via-se um bar de madeira escura gigante com cadeiras feitas de imitação de couro verde-musgo sobre barras douradas contra o carpete vermelho. Era todo iluminado por uma luz branca que vinha do chão por trás do bar, iluminando os balconistas vestidos em trajes hype. 

Entrecortando o tapete vermelho, com ornatos cor creme e laranja imitando ladrilho, o mesmo acrílico dos aquários era o teto de um labirinto no andar inferior, onde várias salas estavam dispostas, com almofadas, mesas... 

Uma serpentina com líquido multicor dentro enviava mensagens de cheiro por todo o recinto. Hologramas táteis estavam dispostos por todos os cantos causando as mais diversas sensações.  

O clima era de perdição e excitação. Andamos para uma parte ao lado esquerdo do bar e uma passagem dava para um palco onde uma banda local desconhecida dos anos 00 fazia uma apresentação virtual inflamada. Tocavam um punk progressivo com uma poesia caótica. Dançamos um pouco. Steff puxou meu ombro. 

— O Dominik te contou que casa era essa daqui nos anos 90? 

Fiz uma cara de estranhamento, indicando que não. 

— Pergunta pra ele.  

Velho mudou sua coloração, expandida de novo. 

Cheguei nos ouvidos de Dominik. 

— Que casa era essa, afinal, nos anos 90? 

Disse, quase gritando por causa do som.  

— Madame Satã... 

Caralho, o Madame Satã!!! Quantos porres não tomei aqui nos anos 90 e 2000!!!! Adorava as quintas open-bar, havia um drink azul da casa, extraterrestre, que era animal! Dançávamos ao goth-rock da época apenas com as luzes estroboscópicas e negra, com muita fumaça e transávamos no banheiro ou no dark-room. Muitos punks costumavam se misturar entre os góticos e virava e mexia os carecas apareciam por aqui para estragar tudo. Muitas lendas do submundo cercava esse lugar.  

A música terminara e resolvemos sair para outro ambiente. Ariadne queria descer no labirinto para conversar. 

Descemos as escadas, que dava para um corredor com as paredes luminosas, líquidas e acima podia-se ver as pessoas andando sob os aquários do andar superior.  

— Você nem imagina a quantidade de coisas que a gente tem pra mostrar pra você daqui. O problema é que você não pode se demorar... — disse Steff, andando. 

— Mas por quê? — indaguei. 

— É difícil explicar, mas a cada segundo que você passa aqui há algo que você deixa de fazer no Universo em que veio. Você vive lá, saca, as coisas lá ainda estão acontecendo e o tempo é uma coisa doida... É daqui que a gente te manda de volta, cara! Daqui você não escapa! — disse, meio brincando. 

Sentamos em uma mesa no centro de um salão cujo teto era uma piscina oval translúcida do andar de cima.  

Dominik ainda sem se sentar perguntou-nos o que gostaríamos para beber. Ari pediu uma cerveja indiana com dosagem alta pra cacete chamada Kingfisher – que ela adorava. Steff pediu um white russian, drinque feito com vodka, licor de café e leite com gelo num copo vintage.  

— Isso é muito estranho. Penso na possibilidade de que esta conversa nunca tenha acontecido — eu disse. 

— Sim, mas se está acontecendo é porque há uma alta taxa de probabilidade que esteja acontecendo em vários outros universos paralelos simultaneamente. Nós somos probabilidades que deram certo, honey! Colapso de onda — brincou Steff. 

— Isso dá nome de banda, hein! — eu disse. 

— Tudo isso pra mim está sendo muito insólito. Ainda não sei se é delírio, realidade ou algo proporcionado por essa mistureba de substâncias conectadas a uma rede global hipertrófica e próteses retinais da Ari. — fiz uma pausa. — O que vocês fazem aqui? Tipo assim, vocês trabalham? 

Um glam decadente, frio e impessoal tocava de background.  

— Eu vivo de gameArt — disse Steff. 

— Sei... 

— Hoje em dia existem simuladores e estimuladores neurais de jogos. A pessoa tem uma sensação real do jogo, de estar vivendo e até sentindo o que está se passando lá. Eu desenvolvo isso aí. 

— Nossa! Que chapado! Quero tentar alguma vez — 

falei. 

— Na verdade você meio que tentou, Nizhus, quando pus o Live At Pompei. Aquilo é um tipo de GameArt. Na verdade o nível de interação lá não era tão alto, pois era um show que já havia acontecido e tals, não dava pra você sair deliberadamente por lá... Quero dizer, até dava, só nesse caso seria mesmo GameArt. Dá pra entender? 

— Aquilo era mais newaction onde você interage com os personagens de um filme, tipo, mas não determina o desenrolar da história, como no Game– — explanou Steff. 

— É — disse Ari. 

Dominik voltava carregando um prato de carne em tiras e o garçom vinha com as bebidas atrás. 

— Olha! O que é isso? — perguntei salivando com o cheiro de carne com pimentão e cebola. 

— Filé mignon em tiras. Mas esse aqui é de laboratório — disse Dominik, sentando-se. — Os caras têm fábricas enormes que cultivam e produzem em massa essas carnes. 

— Já faz algum tempo que não existem mais animais na Terra. Quer dizer, muita gente ainda coleciona animais abissais do fundo do mar, em aquários pressurizados. É meio exótico, sabe, peixe que brilha, fumarolas de ácido... — diz Ariadne. 

— São os prisioneiros da Nova Era — disse Dominik sentando-se. 

— Então, voltando ao papo do GameArt, existem níveis de veracidade disponíveis nos jogos, que variam de pessoa para pessoa. Se a pessoa for um pouco mais sensível do que o normal é recomendável que não vivencie plenamente tudo o que seus sentidos podem ter estimulado nos jogos. Aí existem níveis seguros controlados pelo Sistema. Porém, na clandestinidade há os malucos que vendem de tudo. E há os viciados em emoções, mais conhecidos como surfistas nervosos, que burlam os controladores de humor e expõe seus nervos ao limite. Eu sou de uma produtora disso aí. Quero dizer, dos legalizados, não dos surffers — esclareceu Steff. 

— E você, Dominik? O que faz? — perguntei. 

— Eu trabalho com criatividade num escritório de marketing, tipo, minha função é pensar fora da caixinha. Imagine uma questão cíclica onde você tenta resolver o problema sondando-o e cai no problema mais uma vez. Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Aí você consegue pensar por fora da questão e descobre a resposta. O ponto onde o fio pode desatar todo o emaranhado é chamado de descontinuidade. Então eu venho com a resposta de que a galinha veio de um ovo de dinossauro ancestral a ela e voilà! Eis a descontinuidade. As empresas pagam bem pra isso. Mas no fim do dia sei que sou uma puta. 

Rimos. 

— Da hora, cara! Poxa, e o Velho, como acabou vindo parar aqui? — mirei em Anatole. 

Vibrou. 

— Não passei por nenhuma outra encarnação relevante e sei lá, não sinto que aquela lá tenha sido a minha última. 

Quando caí na dimensão 11 do antirreino, perambulei para alcançar o autoconhecimento. Descobri que eu mesmo vivi em um plano holográfico em uma supernova. De lá fui parar na singularidade desse universo aqui.  

— Mas pra quê? 

— Só sei que mais uma vez vim aqui apenas pra te encontrar. A gente vai reconfigurar nosso passado no século XXI. 

— Ixi... 

— Nada! Relaxa, não somos heróis de enlatado americano, muito menos santos humildes da literatura religiosa. A gente se conhece, né!  

— Isso é tampouco a vida real! — Dominik disse, presunçoso. 

— Ah, se a gente lançar mão das últimas teorias que dizem que o Universo só se tornou real a partir do aparecimento do primeiro ser consciente... — Steff fazendo polêmica. 

— Acho que tô ficando breaquinha — disse Ariadne. 

— Nossa, você não tem nada a ver comigo mesmo, Ari — eu disse. 

 

Pelo que sei você era um devasso no século XXI, né? 

— Steff, jocosa. 

— Marrom... — brinquei. 

Rimos.  

Estávamos todos bêbados. Bebemos muitas cervejas mais, com drinques e usamos outras novidades do futuro que nos foram oferecidas naquela noite. Aquela fora uma das noites mais alucinantes que qualquer um poderia ter tido. Éramos privilegiados! 

 

Depois de bebermos mais muitas cervejas e que todos estavam completamente alcoolizados, (breacos mesmo!) resolvemos sentar na frente da balada mesmo com toda a gente passando por nós. Algo instintivo fazia com que xingassem, mas não nos atropelassem. Nós cantávamos e estávamos em comunhão. Até o momento em que nós nos olhamos e soubemos que era chegada a hora.  

— Vamos então? — disse Ariadne. 

— Vamos — Steff. 

Vamos, pensei para Ari. 

Cambaleantes, éramos donos da cidade. Cantávamos e ríamos. Cumprimentávamos pessoas no meio da rua. Nosso guia era o GPS no canto superior esquerdo da retina da Ari.  

Andamos por mais meia-hora, até que chegamos em um portão, pesado e negro onde se lia Omnes Similes Sumus (Todos Somos Iguais), onde pessoas choravam, e muitas pareciam ter suas vozes emitidas por um rádio semissintonizado dentro da água (essas possuíam seus maxilares/mandíbula, ou a garganta, ou a boca, ou mesmo a cara toda substituída).  

Abriu-se o portão e subimos uma escada larga, espaçosa, rumo a uma porta alta que ia até um teto translúcido. Ao adentrar, fomos surpreendidos pelo silêncio súbito. Isolado do burburinho ensurdecedor e, como eu viria saber depois, das famigeradas câmeras, pois ali era um lugar como que sagrado! 

De dentro das retinas de Ari eu via árvores frondosas, ciprestes altos paralisados pelo ambiente confinado e sem vento. Aleias calmas guardavam centenas de milhares de corpos. O cemitério era uma cidade, por isso havia carrinhos como os de golfe distribuídos. Pegamos um e ouvimos o chip de Dominik acionar o motor e num tranco começar a andar.  

Há alguns anos atrás recebemos uma visita 

ilustríssima — começou Steff — No dia 12 de abril de 2052, uma mensagem atribuída a um extraterrestre tornou-se inexplicavelmente viral na internet. Essa mensagem informava uma data específica para que um grupo de indivíduos do espaço exibissem uma transmissão aqui em determinados locais do globo e tivessem conosco de forma pacífica em vários lugares do mundo — contou, olhando no fundo dos meus olhos. 

— É, naquela época toda aquela papagaiada toda de o Governo querer esconder informações sobre OVNIs já tinha acabado e os encontros com os ETs começaram a ficar meio que normais — complementou Dominik. 

— Isso. E o local indicado aqui no Brasil foi Pirenópolis. A galera lotou as ruas da cidadezinha para ver o lance apesar de as grandes mídias ignorarem o fato — Steff.  

O caminho era sereno e mal iluminado e de vez em quando víamos por entre as sombras homúnculos se lamentando. 

Não foi nenhum show de luz e som. Pra falar a verdade foi até bem humilde, uma vez que deixaram claro que a ideia não era fazer alarde. Vieram por uma abertura no dimensional no espaço-tempo... Um cara de terno e sorriso sereno, com traços que lembravam todas as raças aqui do mundo apareceu do nada na frente de um palanque e falou um monte de coisas. Tá tudo na net, peraí que eu já acho e mando pra Ari – pensava Dominik. 

Rapidamente Ari recebeu a transmissão.  

Ele falou por duas horas sobre um monte de coisas. Que estávamos sendo observados há um tempão. Que eram uma civilização pacífica, parente a nossa e que haviam decidido se aproximar nesse momento para avisar que não havia jeito — estávamos no fim e que era preciso evoluir o máximo que pudermos em pouquíssimo tempo e que o efeito disso seria individual e para o todo. 

— Ótima notícia, não? Isso dá-nos a certeza de que o Universo está expelindo de si o câncer Ético! — comentou Velho. 

O carrinho havia parado perto de um túmulo raso, sobre o qual havia um anjo que apontava o céu com a mão esquerda e com a direita segurava uma tocha acesa. O nome escrito ali era Ângelo Salusiano (1992-2019).  

Porra!!! Agora eu sei o ano que vou morrer!  

— Deixa de ser mal-agradecido! Só de estar aqui você não acha que já está no lucro não? — pontuou Ariadne. 

E eu procurava palavras. 

— Esse lance é relativo também, cara — ponderou Steff. 

— Essa é a questão, Nizhão! Tudo o que a gente faz na vida é mudar o passado E É EXATAMENTE ISSO QUE ESTAMOS FAZENDO!!! Fala aí, Steff — pediu Ariadne. 

— Bom, aqui é o lugar mais seguro e confiável que temos pela cidade. Vamos fazer o que viemos fazer — instruiu Dominik, cortando o assunto abruptamente. 

Dominik fechou os olhos e a estátua começou a se mexer. Pronto! Esse é o cúmulo da bizarrice. Agora vou explorar meu próprio túmulo!  

Um buraco no chão evidenciava uma escada. Gente que adora uma escada inusitada no chão... 

— A gente gosta mesmo — Steff riu-se. — Vai! Vai! 

Vai! Antes que alguém veja! 

Lá embaixo vimos uma velha lâmpada incandescente iluminando os três lances de escada estreita. Descemos com certa dificuldade, pois não era muito bem iluminada e a estátua fechara-se rapidamente.  

 

Paredes chapiscadas, sem acabamento, portinholas de ferro protegendo os corpos dentro das tumbas iluminadas por uma lâmpada incandescente de 60 watts que falhava de vez em quando (aquele tipo de iluminação havia sido extinta há anos). Cheiro de mofo, terra, com algo doce, nem queria saber notas de quê... O teto baixo conferia ao lugar um aspecto claustrofóbico. 

— Pronto! Quem trouxe o fumo? — perguntei. 

Só faltava isso para a negada finalizar a bizarrice. Aliás, usar qualquer tipo de droga nessa loucura seria assinar o contrato com o diabo em pessoa e arrendar a sanidade. Ao invés disso, depois que sentamos nas bancadas de cimento, Steff abriu sua bolsa e distribuiu latinhas de 250 ml de Alcohol Killer, um composto industrializado da época que anulava os efeitos do álcool no organismo fazendo a pessoa voltar a ficar careta de novo. 

Cara, é o seguinte — começou Velho numa cintilação amarelo-claro. — A Humanidade está indo pro saco. A gente (digo eu e você) não chegou nem perto de sair desse Universo, viajamos milhares de anos-luz, mas apenas por aqui e nele fomos tão arrogantes que chegamos a achar que se morrêssemos, a vida toda sucumbiria conosco. Tudo isso porque não conseguimos domar emoções básicas como o medo e o tesão. Dá pra entender? Medo da morte, de desaparecer, da falta de sentido da vida, da dor, da solidão... Pra isso nos entregamos a prazeres muitas vezes perigosos, acumulando bens vitais em nome do luxo e da ostentação, fazendo com que outros pereçam, causando o desequilíbrio e transformando tudo ao redor, inclusive nós mesmos, ao ponto (sem volta) de acharmos que não há outra maneira de viver senão dessa maneira — dizia com o dedo em riste, cutucando o ar como um maestro da palavra. — Você sabe de toda a ladainha, né. Então, meu caro, já falei que você não é especial e você sabe disso. É por isso que está conosco agora, nesse momento. Isso não foi escolha nossa, tampouco nós somos especiais, e mesmo que fôssemos, não seríamos tão arbitrários em escolher você em lugar de qualquer outro. O fato é que você é quem está aqui agora...  

Dominik fechara os olhos. Estava em transe recostado em seu ombro esquerdo de olhos fechados. Babava... Eu me sentia sóbrio, só precisava ir ao banheiro (nesse caso a Ariadne precisava mais). 

— O Domi dormiu? — pensei pra Ari. 

— Tá em transe. É a força do Velho nele... Ele tá sugando toda a energia do coitadinho — ela ecoou nas paredes do crânio. 

— Nossa, mas você não fica assim — afirmei intrigado. 

— Eu treinei bastante. Aliás, você é magrinho! 

Ela riu em voz alta. 

Steff levantou-se, abriu uma porta de metal enferrujada, um cheiro acre arrebatou-nos. Um lead vermelho piscava lá dentro. Ela fechou a porta atrás de si e logo após ouvi um baque seguido de um outro contínuo de equipamento eletrônico robusto. Aquilo soava como uma miniusina nuclear em minha imaginação. 

— Você veio pegar algo vindo da singularidade. Vai usar quando voltar. Assim eu espero. Porque o que está para receber é poderoso — disse Anatole. 

Poderoso tipo como? — perguntei. 

— Cara, sabe quando você sente que está mal de saúde... Melhor! Quando você tem um machucado e tem fé de que vai sarar. Quando vê que várias partes de você — fez questão de enfatizar as aspas com a mão... — Estão morrendo, mas sabe que outras várias vão sobreviver? Então, é mais ou menos assim que a Terra está. Você é uma célula e querendo ou não estava doentaça, fala a verdade?  

— Tinha me entregado já. Nada fazia mais sentido... 

— Então, não é só a Terra, tudo segue um propósito. Hoje você tem a consciência de célula, mas a gente quer que amanhã você tenha consciência de órgão, depois de sistema, até superar a consciência do corpo, mas para isso você precisa se ligar energeticamente ao todo... 

— Mano do céu! Agora tudo faz sentido antes da Evolução Dhaen!  

A porta se abre e vemos a cabeça de Steff. 

— Então, na hora que quiserem... — Steff. 

— Preciso ir ao banheiro — disse Ariadne. 

— Putz! Sério? — Dominik saiu do transe e se levantou. — Bom, se isso aconteceu agora é porque tem um motivo. O problema é: aonde? Steff, precisamos de um banheiro! — Dominik levantava-se. 

Fizeram aquela cara de expectativa até que Dominik em pessoa deu a conclusão: 

— Vamos fazer no pé da escada. Ninguém vai sentir o cheiro por um bom tempo. Além do mais é meio arriscado sair agora. Sem crise, né Ari? 

— Nada! Quem vai primeiro? - Ariadne. 

— Vai lá, você deve estar apertadaça. 

Abrimos a calça em um canto perto da porta e mandamos ver. Podia sentir a bexiga da coitada agradecendo. Descemos abotoando a calça, Dominik estava pronto para subir quando ouvimos o barulho da estátua e passos metálicos sobre o cimento. Olhamos assustados um para o outro. Dominik mexeu a boca dizendo fudeu, batendo a mão espalmada sobre a outra fechada. 

 

Dava para ouvir as engrenagens e as juntas seguidas do tilintar metálico do passo pesado, como se fosse o Robocop descendo.  

Quem desceria até lá? Quem além dos três sabia do esquema da estátua? Ou alguém havia nos espionado ou...  

Steff fora muito ligeira. Em uma fração de segundo havia desligado tudo e estava para fora da saleta, trancando-a quando alguém aparece no pé da escada.  

Era um ser feio, cheio de tatuagens por todo o corpo híbrido, estava nu praticamente. Também não havia nada de constrangedor para ver no meio daquele monte de conexões e partes parafusadas. 

Steff adiantou-se.  

— A gente já tá indo...  

A superfície do corpo daquela quimera era todo esverdeado e reluzente. Ouvia-se as lentes ajustando o foco e mirando cada um.  

De repente a quimera rebaixou-se em uma posição como que sentada sobre si mesmo. Ela literalmente arreou. 

— Sua vontade é seu guia. 

Sua mandíbula fazia barulho amadeirado quando falava. Ninguém sabia o que fazer. A essa altura o xixi de Dominik deve ter sido reabsorvido pelo corpo e ter se transformado em suor, mas não, foi ele mesmo quem tomou a iniciativa. 

— Eu preciso muito mesmo ir ao banheiro. Se não houver objeção eu gostaria de aliviar antes de deliberar sobre nossos motivos aqui. 

Aquela coisa estava de brincadeira, pois pareceu ser meio sádica a julgar pelo tempo que teve para responder a Dominik. 

— Não esqueça de dar a descarga. 

Que senso de humor besta o daquela joça!  

Dominik voou pela escada. Ficamos ouvindo em silêncio. O coitado demorou um pouco para começar, pois estava constrangido. Demorou para terminar também. Reparamos que o fluxo de xixi havia chegado no andar que estávamos e se acumulava no canto da parede.  

A quimera nem se mexia, parecia nem respirar. Nós também não.  

Passos e de repente o aliviado aparecia. 

— E então... ? 

— Vocês têm a gema-humana — disse automaticamente. 

Entreolharam-se. 

— Quem é você? 

Ela parecia confortável meio que acocorada. 

— Sou um peregrino, uma testemunha da gema... Tenho 200 anos de idade e fui salvo por ela há muitos anos atrás. Não há mais nada para mim aqui nesse mundo. Vim por gratidão e por sentido. Todo este momento está sendo registrado como documento histórico. Vou guardá-lo em uma espécie de meditação ao longo dos tempos, mantendo minha vida em latência — continuou. — Ela, a gema, é a pedra filosofal, deume vida eterna, saúde perfeita e riqueza, uma vez que a abundância está ligada ao desejo e este foi-me diminuído. Sendo um robô, sou afortunado. 

— Só uma pergunta: como você sabia deste momento? — perguntou Steff intrigada. 

— Depois de ser salvo de um derrame cerebral e ter mudado toda a minha vida e constituição, a gema sumiu. Fiquei triste, pois na época achei que esta gema poderia mudar o mundo, aí dediquei minha vida a procurá-la. Viajei pelo tempo por algum tempo, investiguei e ela me trouxe aqui. O poder dessa pedra maravilhosa está além do corpo humano. Ela meio que me pôs ao caminho certo, arrumou toda a minha vida. 

Aqui é a encruzilhada do tempo, este é o ponto por onde ela volta ao lugar onde eu estava quando mudou o rumo de minha vida. Quero garantir que deste ponto nada possa interromper esta passagem. Apesar de saber que não tenho o controle de nada aqui, este é o lugar onde vou me sentir em paz. 

— Será um prazer. Qual é o seu nome? — Ariadne. 

— Perdi minha identidade há muito tempo. Sou um nickname diferente para cada lugar que logo. Gosto de usar yogi_79. Se preferirem... 

— Ok, então se podemos confiar em você... — disse 

Steff. 

— Vocês não têm muita escolha, né? Pode religar a câmara de imersão, Steff. 

Aquela coisa emanava bondade e foi esse eflúvio que nos fez sorrir. 

— Então daremos início aos trabalhos! — exclamou 

Steff. 

Entrou na saleta e recomeçou a ligar os equipamentos.  

Aquelas pessoas iriam deixar saudades. Mas sabia que uma hora ou outra iria reencontrá-los sob a pele e história de outras pessoas. Sentia que meu amor deveria ser expandido e sob essa perspectiva tudo ficava mais compreensível. 

O barulho contínuo lembrava um cooler de computador superpotente. Steff assobiava algo que parecia com Raul Seixas. Era confuso. 

— Velho, se liga — disse Anatole. — Quando Steff terminar, você vai entrar naquela tumba ali na câmara de imersão. É de lá pra casa, firmeza? 

— Beleza. 

Momentos depois ela punha a cara de novo para fora da saleta, dando-nos um sinal positivo. 

Subimos na tumba com dificuldade, ajudados por Dominik. Olhei de novo para aquela cena imaginando o que aconteceria com aquele Universo paralelo quando Velho falou: — Como todos nós, o passado também está em mutação. 

A gente não é isso aqui — sorrindo. 

Sorri e ele fechou a portinhola... 

A contagem começara, eu visualizava Ari.  

— Você pode ir para qualquer lugar, mas lembre-se que é responsável por mim onde quer que for. Eu te amo — disse linda, a Ari. 

Seu sorriso gravou-se em mim. 

           

Alguns olhos semi-invisíveis flutuavam. Haviam presenças. A reviravolta com as dimensões estava acontecendo de novo. A câmara estilhaçava-se em várias personalidades como um caleidoscópio. Cada buraquinho, cada fresta, virava do avesso e se contorcia. Suas pontas brilhavam.  

Quando as pessoas rezam ou oram (como quiser) eu realmente escuto... 

A sepultura de Nizhus estava ali ainda, podia ver pela água no chão, por entre os vapores, por entre mais estruturas sólidas preenchendo o espaço alvo.  

Sentiu-se descolando do corpo de Ariadne. 

Agora você vai entender minha situação, eu não tô brincando de esconde-esconde com ninguém. Essa também é uma condição imposta a mim. Mas não vou mentir, algumas vezes até que é divertido estar desse lado, outras é deprimente...  

Infinitas colunas enormes, douradas, com esmeraldas subiam até as alturas. Fumarolas rosa-pink ascendiam lentamente e vez por outra congelavam, pairando no ar.  

Imagina que você é um desenhista e conforme vai desenhando seus desenhos ganham vida de verdade. Mas independente da maestria com que você maneja o lápis no papel, a terceira dimensão para eles é apenas fictícia, uma ilusão.  

Olhou seu próprio corpo e podia ver suas entranhas em uma pot-pourri de veias, músculos, nervos, ossos e vísceras desdobrados movendo-se junto ao ambiente ao redor. Tudo entrelaçava-se como raízes sobre o solo de uma floresta. 

É assim! Não dá pra mudar. Continuando... Quem está lá desenhado vai passar a vida sem conseguir ver quem o desenhou por um simples motivo: seus olhos 2d só enxergam 2d. Eles nunca vão conseguir enxergar o que a gente da terceira dimensão enxerga. De certa forma é triste, mas é uma condição natural do corpo Dele, o Ser Supremo.  

Ladrilhos enormes continham enfeites de belezas naturais raríssimas e animais híbridos, exóticos. As cores estavam além da percepção vulgar.  

Algumas pessoas, quando oram, oram com o coração, eu vejo, eu sei. Mas poucas delas fazem silêncio para me escutar depois.  

Abaixo de Nizhus o líquido que fluía sob e entre as extremidades de seu corpo era energético. Porém, não havia chão, o caminho era onde seus olhos pousassem. Sob a superfície do líquido via-se o desenrolar da história do mundo como Humanidade a conhece. Ouvia vozes, pensamentos, cantos de passarinho, buzinas, pessoas orando, rugidos. Em algumas regiões do chão via-se o espaço sideral. Colossos que harmoniosamente dividiam o espaço vertiginoso com subpartículas e interagiam!  

Ele via o sonho de Eistein. Compreendendo a teoria integrativa entre a Relatividade e a Mecânica Quântica, mas não com símbolos, palavras ou números – mas de forma mística. Sentiu que eram a ligação entre tudo. As testemunhas da História – não os humanos, mas as consciências... 

Plantas graciosas sorriam, acenavam, cumprimentavam e se desenvolviam, mas nunca chegavam a um ápice em seu crescimento contínuo.  

Olhou para o céu e o caminho se abriu para uma imensa clepsidra vítrea-verde lenta a ditar o ritmo de tudo, como um grande coração. Dentro dela um ser nadava por entre os vagalhões oníricos e colossais.  

Lembra do Réquio, do plano holográfico de controle Messier 4, de onde você saiu? O impassível mestre da casualidade... 

Subitamente seu coração começou a fulgurar, uma mão quente envolveu-o por fora e por dentro de Nizhus. E por detrás da clepsidra ele, o demiurgo, surge caminhando. Igualmente quimérico como o neófito, todo luz – biofotovoltaico – sob a ótica da configuração daquela dimensão. Sem sexo, cor ou origem.  

Estamos no plano de controle holográfico central, no coração da supernova SN 2006gy, na galáxia NGC 1260 da constelação de Perseu, há 238 milhões de anos-luz da Terra, porém entrelaçados. É daqui, desse laboratório extradimensional de alquimia que eu produzo as mudanças deste Universo, mas em especial na região da Terra mesmo, que é onde há o entrelaçamento oficial cósmico estabelecido.  

O corpo de Nizhus resplandecia, vibrava em diferentes padrões cíclicos que se iniciavam em um centro visível e propagava-se para os objetos próximos. Em contrapartida, sua pulsação sanguínea acompanhava os fulgores Dele.  

Você não imagina como é difícil... – COMO FOI DIFÍCIL – criar a vida na Terra!!!! Foi uma trabalheira! Daqui eu tive que criar as condições químicas propicias, deixar rodar a história e ir voltando para retocar uma substância aqui, uma condição não muito propícia ali... A Terra e quase tudo é, foi e estará sendo feito a partir do futuro. Na verdade a dinâmica temporal expande de forma inteiriça, como um pacotão, onde o presente, passado e futuro se desenvolvem simultaneamente. Mas isso é complexo e chato de explicar e não vem ao caso agora. 

Viu vários universos como bebês pulsando. 

O fato é que nós entendemos que havia uma forma para que eu me comunicasse com vocês que estão lá do outro lado. Começamos a testar um dispositivo que era como uma anteninha, nos animais, chamado glândula pineal. Aperfeiçoamos, ajustamos todo o mainframe e então surgiram vocês. 

Viu a localização das aldeias pelo mundo no começo da Humanidade. Eram tão distribuídas quanto o resto da fauna. O demiurgo agachou-se para observar de perto um casalzinho peculiar, voltou-se para Nizhus e continuou 

Então, aí a gente mandou o Projeto Cromagnon. Rolou, deu certo! Os protótipos mandaram bem, estavam conectados direitinho, a gente enviava os comandos e eles captavam com facilidade. A gente foi pra frente com esse negócio. Foi aqui que nasceram os primeiros astrólogos, médiuns, profetas, essa galera que consegue enxergar por entre as dimensões  

Apontava para a estepe onde os dois passavam a tarde tirando catota do nariz. Sabe como é, né, seres completamente instintivos, medrosos e hedonistas.  

Respirou fundo após uma longa pausa e disse, traspassando Nizhus com o olhar.  

Vocês são cabeçudos, Nizhus! Perderam a conexão com a gente.  

O casalzinho sorriu para Nizhus. Eram adolescentes feios, traços duros, mal-acabados. Pele grossa, pêlos por todas as partes, pequenos em porte físico. Estavam vertiginosamente entre Nizhus e o criador, eram como bonecos vivos. Seu território estava localizado no Atlântico, discernível por causa do clima e da vegetação latifoliada, característica das terras daquelas costas. Podia-se ver ao longe (eram capazes por estarem em um plano extradimensional) outros tipos de humanoides em suas rotinas, afastados do casal apenas por uma cordilheira praticamente intransponível. Estes por sua vez eram agressivos e instintivos, diferentes do casalzinho que era mais refinado. Estes dois sabiam rir, passavam horas grunhindo entre si, fazendo caretas e gestos.  

Esses homúnculos cresceram juntos e a interação entre eles fez com que se desenvolvessem geneticamente e gerassem uma outra classe de humanos, que possuíam empatia e sensibilidade. Esses dois perceberiam mais coisas no mundo do que os medianos de Neandertal.  

De cima, o lugar era lindo, dotado de uma natureza exuberante e formosa. 

Eles viviam das frutas que nasciam lá. Eram basicamente coletores. Não caçavam, em vez disso preferiam criar alguns animaizinhos para abatê-los quando a fome apertasse. Tipo assim, os caras se sentiam meio que os reis, quase os únicos em seu meio que tinham habilidade para andar completamente eretos. Sabiam apreciar o gosto e tals. Não demorou para que começassem a discriminar e subjulgar animais que não o faziam. A tal da serpente foi um desses animais que, como rastejava e era de fato perigosa, não demorou para os ignorantes começarem a demonizá-la e a tratá-la como sendo de um reino inferior. Os que olhavam mais alto eram os donos do céu... 

Eram realmente selvagens, aqueles dois - pensou Nizhus. 

Um movimento chamou a atenção: algo se movimentava ao seu lado direito, percebeu que era ele mesmo e o criador mais ao longe. Este outro ele o chamava e Nizhus deixou-o contar a história da criação para aquele outro maravilhado. 

Aproximou-se. O aroma do lugar era caleidoscópico, alternando toda hora bruscamente entre perfumes delicados, como que o incitasse a provar qual o mais atraente.  

Sabe as vozes que às vezes vocês pensam ouvir, as sensações engraçadas, os rostos que embalam na hora de dormir, as guerras no céu, desenhadas nas nuvens, os pensamentos que precedem as situações, as aversões inexplicáveis, os eurekas, as alucinações, as vozes dos esquizofrênicos... Têm origem aqui, mas na verdade somos nós por trás de tudo isso falando com vocês. Estamos conectados. Nada existe sem motivo, aliás, tudo o que aparentemente é sem motivo nem causa é o que há de mais engenhoso. 

Pedras engraçadas nasciam de membranas, e se moviam com jeito infantil, seu percurso deixava rastro de ouro que se desmanchava no ar e virava pó ao vento morno, demonstrando o quão preciosas são as coisas corriqueiras e efêmeras da natureza. Diamantes com brilho inefável eram como que expelidos por rostos risonhos e amistosos de rocha que apareciam e esmaeciam, vocalizando suavemente. 

Tudo simpático e gentil. Peixes de porcelana nadavam um doze avos de tempo mais lentos que o normal, deixando uma impressão fantástica genial em quem se dispusesse observá-los e a tentar compreendê-los. 

Um intento tornou-se fato instantaneamente, sem que Nizhus pudesse ponderar. 

— Tudo bem, você foi quem nos criou, mas como é que isso aconteceu? — as palavras de Nizhus eram coisas tangíveis. 

O vácuo alargou-se e energias potenciais se dispuseram entre o neófito e o criador como calor que se vê na estrada.  

— Para onde vamos? — frase viva. 

Rosto paternal.  

Um ponto no vácuo potencial fremiu, dividiu-se em outro fremente. Mais um e a exponenciação fez-se imensa até que começaram a se diluir todos os que se dispunham em certas linhas e o crescimento exponencial era ordenado por aquelas linhas que formavam a flor da vida dos geômetras sagrados.  

— Este é o número de possibilidades. O universo é um fractal, vocês são como estrelas que ao morrer se tornam buracos-negros, geradores de outros big-bangs, outros universos. Vocês, nessa realidade, não só estão no meiocaminho para impregnar de inteligência todos os átomos, como de sabedoria também. Estamos muito perto disso. Essa era a ideia. 

— Ideia de quem? 

— Minha e da Assembleia Cósmica.  

Réquio bate seu corpo colossal no vidro e desliza pelo vidro demoradamente, como um transatlântico animal. 

Vocês humanos, depois de chegarem à singularidade, que é o estágio onde a natureza é mudada em seu âmago e toda e qualquer partícula é impregnada de inteligência, vão a um tempo anterior ao surgimento de vocês mesmos para espalhar o DNA humano por este universo e então, com o desenvolvimento desse gérmen em diferentes condições e ambientes, é formada essa assembleia constituída de diferentes raças. 

A ideia é exatamente fazer com que esse e outros universos gerados de buracos-negros, sejam infestados com sabedoria. A partir da revolução quântica, quando vocês passarão a manipular a matéria em sua essência, a tendência será inevitável.  

Mas antes disso acontecer precisávamos que vocês fossem os sentidos da Terra, bem como as águas são a corrente sanguínea, as rochas os ossos, o clima o pulmão... Ela é um indivíduo gracioso e amoroso.  

Quando o dia da singularidade chegar, a Humanidade como você a conhece estará ultrapassada - morta. 

Alguns aliens passeavam por ali. 

Na boa, Nizhus, vocês piraram! Matando uns aos outros e tudo ao redor. Vocês estão como câncer, cara! Tudo em nome do ego, desde que se levantaram do chão, orgulhosos pacas, se distanciaram da tal serpente achando que são superiores. Não entenderam o lance da complementaridade. A gente até mandou uma galera infiltrada pra dar uns toques pra vocês. Eu mesmo já apareci por lá algumas vezes, mas é difícil, cara! 

Viu alguns aliens fazendo a passagem dimensional e nascendo na Terra. 

Vocês fecharam as portas, os olhos, os ouvidos e até bloquearam a glândula pineal. Distorcem ideias, valores, fazem grandes corrupções em nome de pequenas recompensas.  

Essa raça tornou-se um problema! A gente precisa lidar com isso. A verdade é que tudo começou com uma equação mal formulada no Plano Diretor dos Mamíferos, onde a relação dor, prazer, fome, amor, reprodução e o ego apresentaram incompatibilidade. Claro que todos esses elementos têm uma função vital, essa era a minha intenção, mas estava tudo desregulado. Resumindo: o que aconteceu foi que vocês se viciaram no Sistema de Recompensa do cérebro e ainda bem que para contrabalancear pusemos uma cláusula regulamentando as ferramentas de autocontrole de proliferação em todas as espécies. Ninguém aguentaria um crescimento exponencial incessante, não é? 

Deu um sorriso sarcástico.  

Nizhus viu a Terra se contorcer, com diversos pontos contraindo-se e os tais aliens voltando exaustos. Momentos depois o clima absorveu algo muito estranho. Por todos os lados havia gritos e desespero. Lembrou-se de quando estava no plano intermediário com os gigantes e a harpias. Doentes em estertor, gente sendo eletrocutada enquanto trabalhava, morrendo de sede em país pobre, que caiu de penhasco posando para a foto em dia de verão, membros que tremem liberando energia pura subitamente sem controle, sangrando até sucumbir no meio do mato, respirando água no último ato instintivo do pulmão nas profundezas de rios lamacentos entre vultos... Toda realidade eufemismada pelos filmes à base de groselha havia sido desnudada. Aquele era o espírito do erro, a constante da doença, o capanga de Deus, a ferramenta de autocontrole...  

Um olho se abriu dentro de Nizhus e ele viu dentro de si todo o conflito entre as bactérias, mitocôndrias e suas próprias células em seu próprio corpo que regozijava e mais ao longe viu um ponto que pulsava débil. O demiurgo convidou Nizhus para aproximar-se. Andaram. 

Fungos negros acordaram de sua latência e passaram a digerir todos os pontos ignorados, todas as arestas negativas feias. Trazendo-as para a nova civilização. 

Os contornos da cena pareciam como que feitos de pele – a sombra de uma menina de costas apontava uma arma para sua própria cabeça. Esses contornos pulsavam sem tempo definido para se autoanular... 

Olhou o neófito com ternura. 

— O que eu quero que você saiba é que a gente está aperfeiçoando as regras, editando algumas leis naturais (que são as maiores causadoras de sofrimento) até atingirmos o modelo perfeito para que este sirva de DNA para outros universos. Não se engane, vivemos em um grande corpo cuja função é se reproduzir a partir dos buracos-negros. 

— Legal, mas por que logo eu estou aqui? 

— Você não é especial, cara. Apenas aconteceu. Nada em você é único, nenhum dom, nada. E você também não vai ficar famoso quando sair daqui, não vai fazer revolução nenhuma. Nada! Aliás, muita gente veio pra cá e voltou. Isso é praxe: vocês querem me conhecer e voilà! A gente arrasta vocês pra cá de uma forma ou de outra. 

Continuou plácido.

Agora eu quero ver você explicar para o povo o que viu aqui. Quero ver o povo da sua dimensão entender — riu-se. 

Teve muito artista visitando a gente. Eles fizeram boas interpretações daqui, o problema é que muitos de vocês têm a mente blindada e não veem a importância do material das leituras deles. 

Esse era o tipo de ótima companhia de bar. Egraçadão, interessante e surpreendemente inteligente – pensou Nizhus.  

Gotas de piano pingavam como cascata confortavelmente. 

Cara, nós precisávamos de mais flores e menos gente na Terra. Estamos com um projeto novo em outro planeta — suspirou, meio que finalizando o papo. — Daí evoluirei outra raça a partir de vocês e das plantinhas, afinal elas não tiveram chance ainda, né! É o próximo projeto. Necessitam só de água, sol e nutrientes do solo, saca? Se você pensar que a alquimia está toda lá nelas o mistério é menos misterioso... 

O ser híbrido gesticulou com tanta graça e harmonia, com tanta consciência das articulações, dos movimentos e suas proporções, da sua constituição, como se fosse ele próprio o ballet. Delineou o rosto de um ser do outro projeto, seu esboço. Não era um alienígena. Sua pele era feita de tecido de pétala, seus músculos eram fibrosos e seu sangue seiva. Via-se que seu sexo era de estame e carpelo, era hermafrodita. Não haveria competição encarniçada por prazer, seria de outra forma... 

Esse cara aqui é o protótipo deste novo projeto. Ele vive em um plano-controle holográfico também. Nossa conexão é perfeita, ele não tem desejos.  

Sua pele brilhava com a energia fotovoltaica do amor. 

Seus olhos cor-de-rosa eram só beleza. 

De seus dedos, cujas unhas eram espinhos gentis, ofereciam algo a Nizhus. Ouviu também um estrondo rudimentar e passos. 

O ser sorria e o oferecia algo multicor. 

   

Epílogo 

 

O retorno de Ângelo fora repentino para Stell. Ela relatou tempos depois que aquela experiência havia sido de muita valia para seus estudos. Ângelo ficara mudo outra vez, tamanho impacto do que vivenciara. Quando estabilizou seu estado físico e mental, era outra pessoa.  

Ele e Stell se reconheceram como almas que precisavam ficar juntos por um motivo além do tempo-espaço-energia e se casaram à sua maneira, eterna. 

Talvez fora esse o motivo que havia trazido o jovem casal paulistano para uma pacata cidade perdida no coração do Brasil. Talvez fosse outra coisa, mas algo haveria de ter ali, pois o sítio adquirido por eles fora vendido por uma ninharia. O dono alegou que precisava se desfazer dele rápido por precisar de dinheiro urgente – problema na família. Mas todos na cidade sabiam que ele só acumulara prejuízo com aquele pedaço de terra morta, como costumava dizer.  

Pouco tempo depois de sua chegada sutil, eles estavam produzindo toda sorte de legumes, verduras e frutas típicas comuns da região. A espantosa produção de vegetais do tamanho fora do comum e sem a necessidade da utilização de agrotóxicos ou fertilizantes extrapolava o consumo deles e passaram a alimentar os pobres.  

Foi assim, humilde, que aquele casal de hábitos quietos começou a marcar a história da cidade.  

Começaram os retiros de meditação e turista de tudo quanto era canto começou a dar as caras na cidade e uma súbita prosperidade fez-se presente. A cada dia a cidade viu seus índices de criminalidade despencarem de forma impactante.  

Não demorou para que o Centro Assistencial Casa Dhaen fosse fundado. Era muito mais do que uma organização não-governamental e não-lucrativa. Ali havia se tornado um polo evolutivo onde aulas eram ministradas, comida oferecida, trabalho, abrigo... Até que começaram os relatos de pessoas curadas. Daí por diante passou a ser muito procurada principalmente por quem sofria pelos males que acometiam o espírito. Aquilo havia virado uma loucura: filas intermináveis, gente acampando pelo terreno do sítio para ser agraciado, desesperados procurando alívio, moribundos, pessoas que chegavam com seus animaizinhos de estimação desesperadas após os escassos veterinários da cidade balançarem a cabeça sem respostas, pessoas com problemas com álcool e drogas que depois da visita simplesmente deixavam o vício para trás misteriosamente... 

Stell e Ângelo haviam se tornado míticos e muitas lendas passaram a envolver também o lugar, sugerindo que ali havia uma caverna secreta para Shangri-la, que era aeroporto de ets, etc.  

O consenso geral de quem morou na cidade depois que os novos habitantes haviam ido para lá era de que aquela região pequena, seca e desprovida de atrativos era um oásis de paz. Em toda a esquina podia-se sentir um cheiro de lar arrebatador e um estranho magnetismo fazia com que todas as ruas levassem a Casa Dhaen.  

Uma súbita onda de prosperidade havia se instalado. Nos dias de retiro de meditação pela paz universal foram detectados longos períodos de inatividade na recepção do hospital da região. 

Nada daquilo havia acontecido do dia para a noite. Ângelo e Stell tiveram que se preparar para receber a missão que suas vocações demandavam. Em especial Ângelo, cuja vida havia sido profundamente transformada após sua experiência transcorpórea. Ele basicamente havia se transformado em um esquisitão com algumas manias estranhas, como se referir a si próprio na terceira pessoa do singular, pois havia definitivamente se conscientizado de que era apenas parte do fluxo visitando aquele corpo e que este deveria ser respeitado e cuidado como qualquer outro ser vivo. Ademais, não poderia mais ficar se digladiando com as pequenas batalhas internas, balançando entre prazer e dor, perda e recompensa, precisava desvencilhar-se da influência das paixões que ajudavam a delinear seu ego, utilizar aquela encarnação para expandir, pois tinha a certeza de que a próxima seria diametralmente diferente, estaria em uma ordem mais alta, ampla, abarcando outros elementos. Sua vitória contra seu vampiro matemático havia sido definitiva. Ângelo encontrara seu elo perdido transcendendo o sofrimento. 

O dois eram extremamente gentis e estranhamente cativantes. Chegava até a ser desconcertante, pois faziam com que as pessoas sentissem que não eram merecedoras de tamanha gentileza, faziam-nas pensar em seus defeitos de caráter e em como fariam para serem mais parecidos com os dois.  

Descobriram que a única forma de viverem era pelos outros seres vivos, a única fonte de felicidade, sentido e completude.  

 

A primavera havia se instalado repentinamente naquele estranho domingo. As flores brotavam com força e impunham sua beleza e delicadeza inoportunamente, com galhos coloridos entrando pelas janelas dos carros e estabelecimentos, passarinhos interrompendo conversas com seu canto ensurdecedor, borboletas pousando em narizes, passeando pelos rostos de cidadãos adormecidos pela insuportável plácida tarde. Os peixes pulavam freneticamente em rompantes cíclicos no lago da cidade, assustando transeuntes e atraindo a curiosidade dos motoristas. Cães e gatos pareciam sorrir e encaravam as pessoas como se quisessem dizer algo, sempre em posição de expectativa.  

Naquela manhã, Stell aparecera no portão e o sol estava quase nascendo. O clima era úmido, porém quente. A plaquinha gentil onde se lia “Casa Dhaen – Canto do Alívio” feito pelos meninos do colégio estava finalmente pregada corretamente na fachada pintada de cal e suja de poeira. O escarcéu dos passarinhos era louco, vinham e pousavam no caminho a sua frente olhando para a porta da casa, junto com insetos, anfíbios e pequenos mamíferos. Eram espectrais. 

Quando ela forçou de leve, a portinhola cedeu. 

Stell sentiu que algo errado estava acontecendo. Apertou o passo e correu com o grito engasgado. Abriu a porta ofegante e deu de cara com o sol nascendo na janela aberta e dois arcoíris impressos no céu ainda seminoturno, estrelado, rosa e alaranjado. Uma lufada de hálito ainda fresco a arrebatou, a presença sorridente, a energia pura do corpo.  

Frances se mexia, corria, pulava, chutava dentro dela (estava já há 7 meses vivendo naquele ventre). 

A lágrima transbordou os olhos pequenos, a voz superou a garganta muda e a mão solitária procurou o toque vazio, porém a energia pura a envolvia – Ângelo não estava mais entre os seus.  

Em cima da cama apenas a gema humana, que mudava de cor veloz, convulsa. Esta era a tal cujo poder curativo, qual era erroneamente atribuído a Ângelo, salvara muitos de doenças e compulsões.  

Stell deu-se conta da magnitude dos acontecimentos quando em pouco tempo dali começaram a emergir rumores estranhos. Um deles dizia respeito de um homem que certa madrugada foi atacado por mais de 10 homens armados com facas, objetos pontiagudos e cortantes, porém, segundo um dos criminosos, a pele da vítima parecia couro ressecado, que as facas investiam mas nunca penetravam e que depois todos viram a imagem de um homem sujo, nu e ensanguentado segurando uma espada e que a partir dali todos foram tocados pela sua energia e se arrependeram. 

Outros relatos diziam respeito a uma prostituta alcoólatra que teve seu corpo aberto ao meio e óbito declarado pelos médicos quando viu Ângelo retirando o veneno da sua alma. No momento em que voltou da morte, sua coloração amarelada desaparecera e seu fígado estava novo em folha, para espanto do corpo médico e da família que estava presente ali. 

Muitos anos depois, Ângelo ainda teria sido visto em bares, bocas-de-fumo, por entre prostitutas, ladrões, mendigos, nos terrenos baldios onde se escondia e se embotava a alma em várias partes do mundo. Os relatos sempre eram da mesma maneira: no limiar da loucura e da paranóia, da morte ou da falência, ele aparecia como uma visão, epifania, causando despertar espiritual e tirando as pessoas do fundo da fossa. 

 

  

FIM 

 

          

      

 

NOTAS 

  

iA corticotrofina, hormona adrenocorticotrófica ou hormônio adrenocorticotrófico (Wikipedia), geralmente abreviado para a sigla ACTH (Adrenocorticotropic hormone em inglês), é um polipeptídeo com trinta e nove aminoácidos produzido pelas células corticotróficas da adeno-hipófise. Atua sobre as células da camada cortical da glândula adrenal, estimulando-as a sintetizar e liberar seus hormônios, principalmente o cortisol, também estimula o crescimento desta camada.  

  

iiO Cortisol é uma hormona corticosteróide da família dos esteróides, produzido pela parte superior da glândula supra-renal (no córtex suprarrenal, porção fasciculada ou média) diretamente envolvido na resposta ao estresse. (…) Considerado o hormônio do stress, ativa respostas do corpo ante situações de emergência para ajudar a resposta física aos problemas, aumentando a pressão arterial e o açúcar no sangue, propiciando energia muscular. Ao mesmo tempo todas as funções anabólicas de recuperação, renovação e criação de tecidos são paralisadas e o organismo se concentra na sua função catabólica para 156 a obtenção de energia. Uma vez que o stress é pontual, superada a questão, os níveis hormonais e o processo fisiológico volta a normalidade, mas quando este se prolonga, os níveis de cortisol no organismo disparam.  

 

iiiSíndrome de Klüver-Bucy: “Os indivíduos perdem a capacidade de avaliar uma situação de perigo, ficam impossibilitados de apresentar sinais de medo ao serem confrontados com estímulos condicionados aversivos. Os indivíduos tornam-se mais dóceis, apresentam baixos níveis sanguíneos de hormônios do estresse e apresentam menor probabilidade de desenvolverem úlceras e outras doenças induzidas por estresse. Uma outra consequência é a regressão à fase oral, levando o indivíduo a colocar na boca tudo que pega, mesmo coisas completamente inadequadas ao consumo humano. 

2 Essas consequências também ocorrem em animais. ” 

 

 

 


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